22.EM DEFESA DA LINGUA E DA CULTURA NACIONAL
EM DEFESA DA
LINGUA E DA CULTURA NACIONAL
A questão da cultura e da língua são
fundamentais na construção da identidade brasileira: elas fornecem a matéria
prima e os elementos para desenharmos nosso rosto. Cultivo a prática de línguas
estrangeiras, prefiro os filmes sem dublagem das línguas que conheço, aprecio a
música e a literatura de outros países, porém procuro mostrar neste texto o
problema da adoção indiscriminada de elementos de uma outra língua e cultura.
Os franceses têm um particular cuidado pela sua língua e cultura, evitando a
adoção das imagens, modos de ser e expressões linguísticas
estrangeiras, inclusive o uso das expressões tecnológicas em inglês.
As pessoas estranham que eu escreva a palavra blogue e não blog[1], mas insisto em realçar a primeira delas para valorizar este e outros
termos adaptados ao português. O uso de termos em inglês vem legitimando seu
emprego, por isso não me cabe deixar de reconhecê-los ou corrigi-los, nos
textos ou falas de pessoas que os usam.
Não levanto esta
questão linguística para defender correções ortográficas ou recusar
alterações que ocorrem naturalmente ao longo da evolução de uma língua[2].
Estas modificações se processam dentro da própria língua, porém não justificam
a simples incorporação de termos de uma língua estrangeira. Por ser um
mecanismo vivo, qualquer língua passa por mudanças e adaptações de termos,
enriquecendo-se pelos acréscimos que se sucedem ao longo de sua evolução
histórica. As variações linguísticas e as adaptações de termos não são
transgressões. Elas são uma prova de que a língua é viva e dinâmica[3].
Não estou, portanto,
trazendo estas questões linguísticas para indicar um modo de falar ou escrever
correto. Ao tratar do uso de palavras estrangeiras, sem
a sua necessária adaptação ao nosso idioma, estou
tentando defender a nossa língua e mostrar sua importância
cultural. Esse tema concerne diretamente minha prática em psicologia
histórico-cultural. É preciso entender que
a língua é uma representação cultural do mundo social. Ela o interpreta e
traduz. Desse modo, qualquer mudança de caráter sociocultural no idioma do povo
brasileiro influencia seu modo de ser e se comunicar e vice-versa. Por isso, considero
natural haver o aportuguesamento de termos e expressões originários de outras
línguas, mas procuro não adotar a simples transposição e uso dos termos de uma
outra língua[4].
Isso pode parecer um detalhe sem
importância, sobretudo por ser o termo ‘blog’, por exemplo, usado pela
maioria das pessoas. Para mim, no entanto, o problema é o efeito cultural
desse tipo de uso indiscriminado dos termos em língua estrangeira. Por não
procurarmos preservar a nossa língua e nosso modo de ser próprio, acabamos nos
descuidando da identificação de nossas crianças e jovens com formulações,
ideais e heróis de outras culturas, em particular americanos. Assim sendo, sem
percebermos, nós vamos desfigurando o nosso rosto, diluindo e distorcendo a
nossa cultura, a nossa identidade e a nossa maneira de nos expressarmos.
Na abordagem deste problema, eu parto
do enfoque da cultura nacional em Nelson Werneck Sodré e de sua defesa das
raízes populares da cultura brasileira, levando em conta o contexto dos
sucessivos embates por ele travados, nas diferentes trincheiras da vida
cultural e política do Brasil. Venho observando que muitos especialistas de sua
obra se preocupam em discutir e classificar seus conceitos, o que é próprio do
meio acadêmico. Interessa-me aqui, entretanto, focalizar, sobretudo, a linha
geral de sua proposta cultural, indicando como ela se enraíza em sua análise de
nossa formação histórica e cultural. Meu objetivo é defender nossa língua e
cultura para que elas correspondam às características sociais e nacionais do
nosso povo[5].
Nelson Werneck Sodré parte da ideia
que os alicerces da sociedade brasileira foram construídos pela colonização
europeia com base na transplantação para o nosso território dos traços da
sociedade colonial metropolitana e do escravismo, pelo governo colonial aqui
introduzido[6]. Seu conceito de cultura transplantada se refere, portanto, ao fato de
a cultura brasileira ter sido trazida do exterior tanto pelos senhores como
pelos escravos, no processo da colonização do Brasil. Daí se conclui que as
atuais distorções linguísticas e culturais acima apontadas têm profundas raízes
históricas. Sem termos consciência disso, continuamos reproduzindo a
transplantação cultural, mesmo na etapa atual da cultura nacional, pois não
erradicamos completamente as raízes profundas da colonização brasileira.
Desde seu início histórico, a cultura
brasileira foi uma cultura transplantada, mas ela se desenvolveu em três
etapas: a etapa da cultura colonial, a da cultura de transição e a da cultura
nacional. Partindo deste enfoque é que Nelson Werneck Sodré orienta sua luta
por uma transformação do país ancorada no fortalecimento da cultura nacional e
na ampliação da democracia. Com ele aprendi que o esforço para a apropriação de
nossa cultura política, artística e literária foi desde sua origem gerada no
estrangeiro. Desse modo, ela produziu, desde o início de nossa formação até
hoje, sérios problemas de adaptação cultural para a nossa realidade e, em
consequência disso, a nossa alienação.
Para ele, o grande problema dos
países de passado colonial consiste em criar uma economia, uma política e uma
cultura nacionais. Considera que quaisquer que sejam os altos índices de
desenvolvimento – e altos índices foram também produzidos pela economia
açucareira ou mineradora colonial - uma sociedade pode apresentar
características de alienação e de subordinação colonial, necessitando uma
ruptura mais profunda com o passado colonial para estabelecer novos e próprios
fundamentos. Salienta que para isto é preciso criar uma cultura nacional, o que
depende para ele da expansão do sistema democrático, da liberdade de
pensamento, de expressão e de comunicação.
Ao estudar historicamente a formação
do Brasil, ele vai desvendando sua origem nessa grande empresa econômica,
social e política transplantada para o território colonial. Nelson Werneck
Sodré indica que a cultura brasileira foi inicialmente importada ou
transplantada, sendo desde sua origem marcada pela alienação em relação às condições
de vida locais. Com base na análise do amplo e profundo processo de
transplantação, é que ele valoriza o surgimento de uma cultura propriamente
nacional, na terceira etapa do nosso desenvolvimento cultural. Ele destaca que
a formação desta etapa acompanha o alastramento das relações capitalistas em
nosso país, cujo marco fundamental é a Revolução de 1930 e a ascensão da
burguesia ao poder.
Nelson Werneck Sodré analisa esta
questão em seu livro Síntese da História da Cultura Brasileira[7], defendendo a ideia da fundamental importância para o
desenvolvimento brasileiro de uma cultura nacional que reflita a maneira de
viver do povo brasileiro. Prosseguindo sua análise em outros livros, como
em A Farsa do Neoliberalismo[8], ele descreve e critica o modo como se
implanta, no Brasil, a ideia da globalização e de um mundo unificado sob a
supremacia absoluta do mercado e das normas capitalistas regidas pela política
e pela cultura das nações mais desenvolvidas. Com a acentuação do processo de
globalização, conceitos como o de nação, de povo e de soberania passam a ser postos
em causa.
Nestes e em outros livros, ele defende, ao contrário, a ideia que os projetos de desenvolvimento devem respeitar nossas particularidades nacionais. Muito importante para a compreensão de sua abordagem das raízes populares da cultura nacional é o destaque dado por ele ao surgimento precoce de uma camada intermediária, a classe média ou pequena burguesia, antes mesmo da constituição de uma burguesia brasileira[9]. Grandes artistas surgem dessa camada, muitos deles com origem na gente escrava, os humildes artesãos que trabalharam na construção do nosso patrimônio artístico e cultural do período colonial. Nelson Werneck Sodré reconhece neles o traço original brasileiro, de onde partirá o fio da autêntica e específica cultura que um dia virá a ser nacional, na medida em que o rosto da nação brasileira for sendo esculpido[10].
O traço essencial da etapa histórica
que se inicia em 1930 é a aceleração do desenvolvimento e a intensa
transformação social do Brasil. Nelson Werneck Sodré distingue duas fases deste
período: a que vai até 1945, marcada por grande efervescência política e por
uma luta ideológica intensa; e a fase posterior à Grande Guerra, após 1945,
cuja característica mais evidente é a da formação de uma cultura de massas, na
qual os gostos, preferências, hábitos, valores, ideias, atitudes e comportamentos
são condicionados pelos meios de comunicação[11].
Esta análise lhe permite concluir que
o problema inicial da cultura brasileira é o da retomada da liberdade de
pensamento e expressão, sem a qual não há condições de desenvolvimento cultural
autêntico. Considera ele que, desde que esse problema tenha o mínimo de
condições de ser colocado, é preciso enfrentar o problema da descaracterização
de nossa cultura, defendendo e preservando a cultura nacional, na receptividade
do que as demais culturas elaboraram de válido. O terceiro problema a ser
enfrentado é o do uso dos meios de comunicação de massa e do controle estatal.
A aceleração das mudanças sociais
após os anos cinquenta favorece a mobilização e radicalização em torno de
propostas de afirmação nacional. A luta de Nelson Werneck Sodré pelo
desenvolvimento se intensifica na década de cinquenta/sessenta, tomando
frequentemente a forma de luta pela cultura[12], como mostra em seu livro que tem este título[13]. Ao fazer o relato dessas lutas, no livro acima citado, ele traça um
interessante quadro da dinâmica do desenvolvimento cultural brasileiro,
ressaltando a importância do trabalho intelectual dentro desse processo, como
procurarei mostrar num próximo texto no qual focalizarei mais particularmente a
questão da contribuição do trabalho intelectual e da literatura para o
aprimoramento da língua e da cultura nacional.
Para avançarmos culturalmente seria
fundamental retomarmos o projeto elaborado naquele momento histórico de grande
efervescência da cultura nacional, aproveitando a experiência forjada pelos
movimentos de cultura popular dos anos sessenta. Precisaríamos evitar,
entretanto, a simplificação cultural ocorrida no bojo do acirramento político
daquela época. A fim de superar isso, seria preferível não repetir a oposição
entre cultura de elite e culturas popular, mas focalizar a importância de
buscar nossas raízes nacionais, na história das culturas locais (como a cultura
caipira paulista, a cultura nordestina, a cultura mineira, etc.) e nos artistas
que souberam interpretá-las com qualidade.
Sem nos preocuparmos em opor o
popular ao erudito, é imprescindível, contudo, distinguir entre uma cultura de
massa simplificada e pasteurizada e uma cultura de raízes nacionais, locais e
populares a ser redescoberta, elaborada com requinte e valorizada. Elementos
das camadas populares ou das elites podem já estar tão impregnados pela cultura
de massa a ponto de com ela se identificarem e esquecerem sua identidade
nacional, popular ou local. Tendo perdido o contato com as raízes brasileiras,
pessoas e grupos das diversas camadas sociais confundem seus rostos e falas com
as imagens e expressões linguísticas projetadas nos diferentes tipos de telinha
dos atuais meios de comunicação.
FONTE DA
IMAGEM: CAPA DE LIVRO DE NELSON WERNECK SODRÉ
PARA VER NO FACEBOOK:
https://www.facebook.com/centrodeestudos.brasileiros/posts/3822802901133312
[1] Há registro de ambos os termos em muitos dicionários da língua
portuguesa. Desse modo, considera-se legítimo usar qualquer um dos termos, mas
é recomendado que o estrangeirismo blog para ser usado deva
ser escrito em itálico ou entre aspas. Existem dicionários, contudo, nos quais
esta palavra em inglês nem aparece.
O Vocabulário da Academia Brasileira de Letras e os
dicionários Aurélio, Houaiss e Michaelis ignoram a
grafia blog, e não apresentam nenhum verbete com este termo.
[2] Recentemente, uma jornalista riu de um político brasileiro que pronunciou
‘adevogado’ e não advogado, mostrando seu desconhecimento das questões
linguísticas. É comum ocorrerem alterações
linguísticas pela adição, supressão ou modificação de sons, acréscimo ou
inclusão de fonemas numa palavra ou entre palavras. No português
brasileiro contemporâneo falado pronunciamos, por exemplo, a expressão ‘o
tempintero’ em vez de ‘o tempo inteiro’; ‘adevogado’ em vez de ‘advogado’, sem
que isso seja propriamente um erro.
[3] Na verdade, a língua é um
instrumento do povo. Embora existam as normas gramaticais que regem um idioma,
o povo pode optar pelas formas de expressão que mais lhe convém.
[4] Os termos importados não cessam de se multiplicar em nossa língua,
e parece até estranho quando usamos suas vertentes adaptadas ao português:
correio eletrônico para e-mail; saite para site; endereço
eletrônico, conexão eletrônica ou linque para link, etc. Apesar
desta dificuldade, em vez de dizer que fui tomar a vacina no drive-thru,
prefiro dizer que tomei a vacina no carro ou pela janela do carro.
[5] Cada povo tem suas características, sua língua, cultura,
território e riquezas naturais próprias. Assim sendo, defendo o direito de
poder preservá-los não só para os brasileiros, mas para todos os povos e
nações, como, por exemplo, os palestinos.
[6] A etapa colonial do nosso desenvolvimento é por ele apresentada
como correspondendo à implantação, no Brasil, de uma grande empresa produtora
transplantada. O que caracteriza a etapa colonial do desenvolvimento é que a
produção está voltada para fora e o fluxo da renda se concentra no exterior.
[7] Nelson Werneck Sodré, “Síntese da história da
cultura brasileira”, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,
2003, 20º Ed.
[8] Nelson Werneck Sodré, “A farsa do
neoliberalismo”, Rio de Janeiro, Graphia,1995.
[9] A influência desta classe média cresce com o apogeu da mineração,
com a expansão comercial e urbana e formação do mercado interno, na segunda
metade do século XVIII. Ela se torna ainda maior após a autonomia brasileira,
no século XIX, em função da intensa participação dessa camada social nas lutas
por nossa emancipação, nas quais passa a exercer grande atividade intelectual,
tanto de caráter político como de caráter cultural.
[10] A atividade intelectual se transforma numa via de acesso e
ascensão social e os representantes dessa camada se tornam intérpretes dos
grupos sociais no poder e de uma cultura de elite, mas também porta-vozes da
rebeldia e das transformações sociais, políticas e culturais, muitas vezes em
descompasso com o atraso das condições políticas e do meio social. Prossegue
historicamente o processo de alienação que gera a divisão entre duas faces do
Brasil: a do Brasil urbano do litoral, voltado para o exterior e receptivo às
suas influências; e a do Brasil do interior, em que as velhas raízes conservam
sua pureza original.
[11] O desenvolvimento dessa cultura de massas é por ele analisado, nas
seguintes áreas artísticas e intelectuais: cinema, rádio, televisão, música,
teatro, artes plásticas, universidade, imprensa e livro.
[12] Esta luta implicou para ele o ônus da perda de cargos, de exclusão
ou exílio dos centros culturais, de prisão e perda dos direitos políticos. Essa
luta correspondeu sempre a uma sobrecarga de trabalho pela intensa participação
em várias atividades culturais, em particular em revistas e grandes jornais da
época, como a Última Hora e o Correio Paulistano, e em outros meios culturais,
como a Associação Brasileira de Escritores (ABDE).
[13] Nelson Werneck Sodré, A LUTA PELA CULTURA, Editora
Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1990.
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