24. AVANÇOS NO ESPINHOSO DIÁLOGO ENTRE CRISTIANISMO E COMUNISMO
- OS PERIGOS DO
ANTICRISTIANISMO E DO ANTICOMUNISMO -
Recentemente, as acusações do anticomunismo vêm se multiplicando. Até o Papa, Bispos e a Confederação Nacional de Bispos (CNBB) são acusados de serem comunistas. Serão estas acusações verdadeiras ou a fumaça do anticomunismo recobre as verdadeiras intenções? As dificuldades do diálogo entre cristianismo e comunismo são antigas, mas antes de abordar a questão é importante lembrar que o diálogo ocorre entre diferentes pontos de vista, propostas e caminhos. Ele não implica adesão ou concordância entre os participantes. Exige tão-somente abertura ao outro, escuta e colaboração para o bem comum. Não podemos esquecer que a alternativa ao diálogo desponta apenas em meados do século XX, só começa a avançar no início do terceiro milênio, e atualmente está dando seus primeiros tímidos passos entre o cristianismo e o comunismo.
O diálogo com o materialismo e
com o marxismo faz parte de minha história de vida, tendo germinado muito cedo
na relação com meu pai – como já testemunhei exaustivamente em diversas
publicações. Meu trabalho na área científica e minhas pesquisas sobre
espiritualidade e religião me levaram a aprofundá-lo e a escrever sobre o
diálogo com o materialismo dominante no campo da ciência. No entanto, não tinha
focalizado até hoje a relação entre cristianismo e comunismo. Achei importante
fazê-lo agora em função da publicação do testemunho de um membro do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), Vinicius Okada, sobre
Nelson Werneck Sodré para o blogue em sua memória; e em função do retorno da
onda de anticomunismo, particularmente em nosso país.
Achei válido o texto de Vinícius
Okada, que publico integralmente e sem correções ou pontuações divergentes, em
respeito ao seu ponto de vista. Nosso diálogo me revelou um jovem estudioso que
manifesta um apreço pelo marxismo democrático e humanista de meu pai. Concordo com ele enquanto
apreciador da vastíssima obra de Nelson Werneck Sodré, que ele considera não só
indispensável para a compreensão da formação sócio-histórica de nosso país, mas
como o maior intelectual marxista brasileiro de nossa história. Na apresentação para a publicação do seu testemunho,
Vinícius se coloca como militante do PCB e da União da Juventude
Comunista (UJC) na cidade de São Paulo. Graduado em Arquitetura e Urbanismo
pela USP de São Carlos, ele tem mestrado em História e Fundamentos da
Arquitetura e do Urbanismo na FAU-USP[1].
Ele se inspira no arquiteto Rodrigo Brotero Lefèvre, e na primeira geração de arquitetos modernos
brasileiros posteriores à construção de Brasília[2],
que romperam com a proposta de arquitetura de Oscar Niemeyer, cuja foto
com Nelson Werneck Sodré introduz
nosso texto.
Como estou afastada das questões político
partidárias e não tenho acompanhado de perto a história do PCB, pareceu-me
importante rever a apresentação deste partido a respeito de seu próprio
itinerário histórico[3].
Verifiquei a reviravolta provocada pela denúncia
do chamado "culto à personalidade de Stalin", em 1956; assim como o
esforço e as lutas até chegarem à elaboração de um projeto com a proposta de
"Uma alternativa democrática para a crise brasileira", em 1979,
no respeito ao pluralismo e aos valores fundamentais da liberdade[4].
Após descrever o processo de conflitos e rupturas internas do partido, a
narração histórica mostra como, em março de 2005, o XIII Congresso do PCB
estabelece uma ruptura com a política governamental do então Presidente Lula[5] e
chega, em abril de 2014, a uma nova proposta de ‘Poder Popular’. Ela predomina
no partido até hoje e defende um processo de construção democrática com base
nas ações independentes da classe trabalhadora.
Os estudos marxistas mais recentes
já aceitam a religião na esfera privada enquanto prática individual, mas muitos
marxistas continuam ainda recusando a participação da religião na esfera
pública e a função social dela. No entanto, a intervenção social do Papa Francisco,
na esfera pública nacional e internacional, é cada vez mais apreciada. Assim
sendo, mesmo sem a aceitação das premissas da fé cristã, o diálogo com os
marxistas pode vir a avançar na área social e pública. Embora eu não
concorde com a crítica de Marx da religião, eu reconheço, por exemplo, o valor de
seu intuito de libertar o ser humano da ilusão, da alienação, da
dominação e da exploração do trabalho rumo a uma sociedade humana mais justa,
fraterna e igualitária. O reconhecimento desta e de outras questões pode
contribuir para o aprofundamento do diálogo.
Tendo vivido no contexto da Igreja da América
Latina, o Papa Francisco desenvolveu uma aguçada sensibilidade em relação à
pobreza e à dominação do capital internacional nesses países. Assim sendo,
ele vem fazendo duras críticas ao
capitalismo como fonte de desigualdade e dos aspectos desumanos e injustos de uma economia que "mata" e é baseada no individualismo, no dinheiro e no primado absoluto da
lei do mercado. Por isso, ele
vem enfatizando a orientação para que os
padres vejam o mundo através dos olhos dos pobres e morem entre eles. Ele tem
posto em relevo a solidariedade, a fraternidade, a descentralização do poder e uma "Teologia do Povo" para resistir à dominação dos pobres pelos ricos.
Seria então o Papa Francisco comunista? De modo algum.
Ele, como outros Papas e bispos católicos, se apoia no Evangelho, nos
ensinamentos de Cristo e na doutrina
social da Igreja. Sua proposta é diversa da proposta social
comunista, mas faz também uma crítica do capitalismo. O reconhecimento da
especificidade da dimensão espiritual cristã e a aceitação das diferenças na
abordagem e na ação social são fundamentais para o avanço do diálogo, sendo
inadmissível a exclusão do cristianismo e de seus membros atuantes de uma
participação social e política. Aos católicos cabe, por outro lado, reconhecer
a contribuição do materialismo e do comunismo em várias áreas, como, por
exemplo, na área da ciência. Cabe a nós católicos aceitar as diferenças de
enfoque e de prática social, como também a legitimidade da participação dos
comunistas na vida pública. Existem ainda muitas barreiras de ambos os lados
para um avanço nesta direção, contudo, tal caminhada é fundamental para a
convivência democrática.
Não podemos apagar os erros e
atrocidades cometidas ao longo das conturbadas relações entre católicos e
comunistas. Um exemplo bastante controverso é o da perseguição ao cristianismo
na antiga URSS[6] e a ação do Papa João Paulo II para o fim deste bloco. Pedro Celso Uchôa
Cavalcanti, que foi assistente de Nelson Werneck Sodré e se exilou na
Polônia - onde se formou o Papa João Paulo II - partilhou comigo seu choque
diante das expressões gritantes da dominação soviética nesse país, que tive a
ocasião de verificar quando fui visitá-lo em Varsóvia, na década de setenta do
século XX[7].
Muitas vidas foram perdidas e crimes cometidos
em nome da defesa desses diferentes pontos de vista e das ameaças atribuídas a
um lado e ao outro, porém não podemos ficar neles paralisados.
Alguns católicos que criticam o Papa Francisco por
sua abertura e diálogo costumam compará-lo com a postura do Papa João Paulo II,
a quem enaltecem politicamente; enquanto outras pessoas fazem comentários no
sentido inverso. Podemos preferir as atitudes ou propostas de um ou de outro,
porém em relação ao tema do diálogo entre cristianismo e comunismo seria
importante entender que estas diferenças têm relação com a história pessoal de
cada um dos Papas, com as condições históricas em que atuaram e com distintos momentos
da Igreja Católica e dos Partidos Comunistas. Não me proponho aqui a fazer uma
análise dessas complexas questões. Não sugiro tampouco que se esqueçam as atrocidades
e erros cometidos, contudo, acho que vivemos num momento favorável ao diálogo e
considero este caminho como preferível para o avanço histórico da humanidade.
É bem verdade que, apesar de o cenário internacional ter mudado, a situação das
comunidades católicas não é ainda nada fácil, em países como a Rússia e a
China. Porém, depois do fim da URSS, o governo da Rússia aceitou abertamente a Igreja Ortodoxa, a segunda maior instituição cristã
do mundo; e a
partir do ano 2000, houve um avanço na relação entre a Igreja Católica e a
Igreja Ortodoxa Russa[8]. Além disso, desde
1992, se iniciou o ‘degelo diplomático’ entre a República Popular da China
e a Santa Sé[9]. Este
degelo avança lentamente e mantém as comunidades eclesiais ligadas ao Vaticano em
grande dificuldade. De qualquer forma, o movimento nesta direção foi lançado, e
vivemos em um momento histórico em que se descortina o horizonte de uma
possibilidade de diálogo entre católicos e comunistas.
Defendo, portanto, o aprofundamento deste diálogo para virarmos a página
e ultrapassarmos definitivamente as atrocidades e perigos do
anticristianismo e do anticomunismo. Movimentos deste tipo servem apenas à luta
pelo poder para impor a hegemonia de um bloco contra o outro, e não respondem
forçosamente aos interesses das populações. O Brasil, por exemplo, nunca esteve
perto do comunismo, nem mesmo em abril de 1964, no início da ditadura no
Brasil. Jango Goulart foi um presidente ligado ao movimento trabalhista
que procurou escutar o forte clamor popular por reformas sociais. No entanto,
ele incorreu no erro de desmontar o esquema militar que impediu os golpes
políticos anteriores. Essa atitude do então Presidente Jango levou Nelson
Werneck Sodré a ir para a reserva militar em protesto a este desmantelamento
das forças militares nacionalistas – como conto em meu livro “Odisseia
de um General do Povo e de sua geração intelectual”.
Surgido no século XIX, o anticomunismo consolidou-se como um poderoso discurso
político no século XX. Ele está ainda presente e atuante em nosso tempo. Assim
sendo, é preciso estarmos conscientes das tentativas de manipulação do
anticomunismo, que nos acena e tenta nos amedrontar com a bandeira do ‘perigo
vermelho’. Essas ameaças vêm crescendo com a polarização política dominante no
cenário nacional, porém não precisamos nos submeter nem ao anticristianismo nem
ao anticomunismo.
Os argumentos anticomunistas têm alimentado o
rompimento com a democracia em diversos regimes ocidentais capitalistas, agindo
na construção de um imaginário anticomunista de ‘cassa às bruxas’. A
organização de forças para conter o comunismo não se limitou a tentar
conquistar as mentes, mas levou à prisão, tortura e morte de pessoas acusadas
de serem comunistas e à criação de um conjunto de leis para criminalizar essa
doutrina e prender seus seguidores. O anticomunismo se manifesta em ações,
muitas delas de grande violência. Ele manipula o terror e o medo, justificando
atos bárbaros incompatíveis com a democracia. Esta concepção alimenta uma
‘guerra psicológica’ transformada em poderosa arma no combate pelo poder.
Entender esta estratégia de dominação da mente constitui uma das tarefas
mais importantes para que se possa pouco a pouco restabelecer a verdade e
libertar as pessoas e os povos do seu domínio, de modo a construir as bases de
uma autêntica democracia.
FONTE DA IMAGEM: ACERVO PESSOAL
PARA VER NO FACEBOOK:
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NELSON WERNECK SODRÉ E A GÊNESE
SÓCIO-HISTÓRICA DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA
por Vinícius Okada M. M. D’Amico*
Introdução
Nelson
Werneck Sodré (1911-1999) foi um dos principais intelectuais marxistas
brasileiros do século XX e uma figura central dentro da militância do PCB.
Formado, desde criança, no meio militar, construiu carreira no Exército
Brasileiro durante quase toda sua vida, tendo alcançado a patente de General
nos anos 1960. Difundiu amplamente os ideais democráticos e nacionalistas
dentro das Forças Armadas e, para tanto, não se furtou de estudar e escrever
sobre a realidade brasileira, tendo o materialismo histórico como guia e fio
condutor de sua obra. Foi destacado militante do PCB, tendo sido membro do
Comitê Central e um dos pensadores de destaque na síntese política do Partido
que balizou sua ação nas décadas de 1950 e 1960. Exerceu a atividade docente na
Escola Superior do Exército e também no Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB). Foi perseguido politicamente e preso após o golpe de 1964,
tendo passado cerca de dois meses detido, e só não foi submetido a tortura
física e afins por conta de sua patente de General. Um de seus primeiros livros
publicados, ainda nos anos 1940, História da Literatura Brasileira foi
muito bem recebido pelo público geral e, ainda, rendeu positiva apreciação
dentro do meio militar. Na década seguinte, publica quatro Antologias
Marxistas: Fundamentos de Economia Marxista; Fundamentos da
Estética Marxista; Fundamentos do Materialismo Dialético; Fundamentos
do Materialismo Histórico. As quatro obras contam com uma ampla seleção de
trechos de diversos autores marxistas clássicos e contemporâneos à época,
esclarecendo sobre diversos conceitos centrais de cada área do pensamento
marxista. Sobre isto, vale a pena destacar que Sodré foi um dos pioneiros no
estudo do filósofo húngaro Gyorgy Lukács, que viria a conhecer em Carlos Nelson
Coutinho, através do trabalho de toda uma vida, a divulgação ampla de sua obra
no Brasil. Também nos anos 1950, participa da chapa nacionalista que viria a
ser vitoriosa nas eleições do Clube Militar, importantíssima entidade
representativa da categoria. A diretoria e seus membros passaram a
ser perseguidos sistematicamente pelas forças reacionárias por décadas a fio
dentro do exército, sobretudo após o golpe de 1964. No início dos anos 1960, já
sofrendo muitas represálias dentro do exército, passa para a reserva. Afastado
do trabalho militar, procede à publicação vigorosa de dezenas de livros, frutos
de três décadas de estudos, mas que aguardaram publicação até aquele momento,
por conta da sobrecarga laboral que enfrentava no Exército. Publicou, ao longo
de sua vida, mais de cinquenta livros e três mil artigos. Sobre a questão
militar, destacamos História Militar do Brasil, publicado já
durante a ditadura, e Narrativas Militares, publicado pela Editora
do Exército Brasileiro, a BibliEx, este ainda quando o autor era militar da
ativa. Sobre cultura, destacamos a já citada História
da Literatura Brasileira, que conheceu, ao longo das décadas,
uma edição revisada e ampliada pelo autor, Síntese da Cultura
Brasileira e Ideologia do Colonialismo. Sobre a gênese
social brasileira, destacamos, Formação Histórica do Brasil,
publicado nos anos 1960 e conhecendo uma edição ampliada e revisada após o
golpe de 1964; Vida e Morte da Ditadura, publicada nos anos 1980 e
fazendo amplo balanço do período mais reacionário de nosso país no século
XX; Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil, que contém um
grande balanço sobre os governos de Getúlio Vargas, bem como do desenvolvimento
capitalista brasileiro, além de contar com uma importante crítica contra a
categoria de “populismo”, difundida acriticamente na análise simplista de
Vargas e outros políticos brasileiros. Além disso, destacamos também dois
livros que criticam o processo de neoliberalização da economia-política
brasileira, Brasil: radiografia de um modelo, versando criticamente
sobre o “milagre econômico” e o domínio internacional e capitalização
desenfreada da economia brasileira na ditadura; e A farsa do
neoliberalismo, publicado em 1995, em análise que muito serve na
caracterização das bases do social-liberalismo e liberal-fascismo de nosso país
hoje. Por fim, destacamos o livro Introdução à Revolução Brasileira,
publicado nos anos 1960, também tendo conhecido edição revisada e ampliada após
o golpe, e que se caracteriza como uma verdadeira síntese da obra de Sodré,
neste livro, podemos encontrar, realmente, a gênese estrutural da análise
sodreana do Brasil e do devir sócio-histórico da, assim chamada, Revolução
Brasileira [CUNHA, 2002]; [CUNHA, P. R.; CABRAL, F., 2006]; [DEL ROIO, 2016];
[MAESTRI, 2011]; [SODRÉ, 1967].
1. Autofobia e Autocrítica
Na
análise da formação de um autor, pode-se procurar os textos e obras que o
influenciaram, derivar o autor da cultura própria de seu tempo, relacioná-lo
com sua época e principais fatos históricos, para assim deduzir desses
elementos uma narrativa minimamente coerente. Contudo, fazemos valer aqui o
alerta de Domenico Losurdo:
“O resultado é vagamente tautológico: descobre-se que um
determinado autor, em um determinado tempo, foi influenciado pela cultura do
próprio tempo. No mínimo trata-se de um procedimento intrinsecamente
reducionista, que termina por reconduzir em grande parte o novo ao velho.”
[LOSURDO, 2006, p. 144].
Em
seu livro sobre Antonio Gramsci, Losurdo se depara com uma contradição evidente
em torno da apreciação do autor dos Cadernos do Cárcere nos
tempos contemporâneos: este foi reduzido, nos círculos literários hegemônicos,
a um teórico inofensivo e a um marxista escolástico. Dessa forma, foge do
método historiográfico acima apresentado. Adota outro, mais profícuo: uma
aproximação de Gramsci a partir dos problemas concretos impostos por seu tempo
histórico, para analisar em sequência suas respostas a partir de sua biografia
intelectual e a cultura que teve à sua disposição, para assim fazer surgir sua
originalidade política e intelectual.
A
obra de Nelson Werneck Sodré apresenta também, no essencial, problemática
semelhante. Foi fruto de desprestígio e esquecimento oportunista nos círculos
intelectuais nas últimas décadas. Tratado como “teórico anacrônico” por sua
defesa de reminiscências de
relações semifeudais no Brasil e visto com distância por ter constituído
carreira militar (tendo, inclusive, alcançado a patente de General), foi vítima
de campanha de verdadeiro ostracismo literário por parte dos que, antes e após
o golpe de 1964, defendiam o caráter acabado do capitalismo brasileiro e, dessa
forma, um programa socialista para o país em oposição a estratégia
nacional-popular do PCB do século XX [MAESTRI, 2011].
Tal
processo, ainda em curso, não tem e não teve Sodré como único alvo. A própria
história do PCB e de seus diversos militantes e intelectuais (bem como suas
obras) foram reduzidas ao longo das décadas a uma página superada da história
brasileira. Tornou-se lugar comum reduzir a história do PCB a uma série de
desventuras de um “partido totalitário”, “autoritário”, “engessado e
mecanicista”, etc. Sem nem se darem ao trabalho de sustentar cientificamente
seus argumentos, os detratores da história do PCB transformam-se, assim, em
verdadeiros detratores da história brasileira. Ignorar a gênese própria da
história do Brasil, e mais ainda, fugir da análise da gênese
histórico-particular do marxismo brasileiro, é a derrota última das ciências
humanas. Assim como sintetiza Maestri:
“A negativa à apreciação
sistemática da obra de Sodré devido a
seu conteúdo e opções metodológicas determinou o empobrecimento das nossas ciências sociais. […] Em seus livros encontram-se páginas magistrais sobre a história da vida cotidiana e das mentalidades; das relações entre história e literatura; sobre aspectos inusitados da história política, etc.
Sodré distinguiu-se
também pela
plena consciência dos
nexos essenciais, também nas ciências sociais, da forma e conteúdo. Por escrever com virtuosismo de artista e de artífice, a leitura de muitos de seus livros permite
verdadeiro prazer estético.
A obra sodreana […] constitui
tentativa de reflexão sistemática,
desde o método
marxista, da sociedade brasileira, passada, presente e futura, e singular
registro da evolução de importante vertente da intelectualidade nacional.”
[MAESTRI, 2011].
Dessa
forma, a retomada crítica da obra e contribuições de quadros como Nelson
Werneck Sodré, tomam-se como essenciais não somente para o conhecimento
apropriado de nossa história e sociedade, mas para a real apreensão do
verdadeiro movimento histórico-dialético que caracteriza, e caracterizará, a
Revolução Brasileira, em sua gênese própria. Nesta chave, sintetiza Losurdo:
“Autocrítica e autofobia constituem duas posições antitéticas. Em
seu rigor, e até mesmo em seu radicalismo, a autocrítica exprime a consciência
da necessidade de acertar as contas com a própria história; a autofobia é a
fuga vil desta história e da realidade da luta ideológica e cultural que sob
ela ainda arde. Se a autocrítica é o pressuposto da reconstrução da identidade
comunista, a autofobia é sinônimo de capitulação e de renúncia a uma identidade
autônoma.” [LOSURDO, 2004, p. 14-15].
2. O Colonial e o Moderno
A integração dos países latino-americanos aos mercados mundiais e os
processos de independência e formação dos estados nacionais não ocorrem de
maneira autônoma e soberana. Na verdade, consolidam historicamente, em um longo processo repleto de contradições, a associação das burguesias tidas como nacionais
com a burguesia internacional dominante. E, dessa maneira, consolidam também a economia
latino-americana enquanto economia dependente, num sentido ainda mais profundo
que na fase colonial.
Esse novo estágio do modo de produção capitalista determina-se pela sua
elevação a um novo sistema de relações de dominação internacional. O
capitalismo na era moderna caracteriza-se por uma reorganização econômica, após
sucessivas crises que convergem para a massiva concentração de capitais, formando assim os monopólios. Além disso, também caracteriza-se pela fusão entre o capital industrial e
o capital financeiro, não mais separados ou autônomos entre si; bem como pela exportação vertiginosa de
capitais, não mais somente de mercadorias, dos países centrais para as periferias. Esta nova ordem, ao
mesmo tempo em que acelera o desenvolvimento econômico, aprofunda as desigualdades não
só entre os países no sistema internacional, mas também entre distintos setores
produtivos dentro das realidades nacionais. São esses determinantes que Lênin caracteriza como
fundamentais do imperialismo, o estágio superior do capitalismo, era das guerras,
instabilidades, crises sucessivas e aprofundamento da dominação dos países centrais (imperialistas) sobre suas colônias, semicolônias e países dependentes [LENIN, 2012].
A formação dos monopólios e a industrialização aceleraram de maneira inédita o desenvolvimento
capitalista internacional. Mas é claro que com tal desenvolvimento aceleraram-se e
aprofundaram-se as desigualdades nos estágios de desenvolvimento capitalista nos diversos países. O países
dependentes não se desenvolvem da mesma maneira que os países centrais. Na medida que a concentração de capitais
encontra aceleração inaudita, aprofunda-se também o descompasso no
desenvolvimento econômico internacional entre as nações, e também entre setores
produtivos no âmbito nacional [LENIN, 2012, p.
166-167]. Esta é a base da lei do desenvolvimento desigual imperialista.
A
teoria leniniana do desenvolvimento desigual é a chave teórica para apreender a
contradição colonial x moderno. A luta entre o colonial e o moderno é central
em Sodré na análise da formação histórica do Brasil. Um país que esteve, em sua
história, estruturado pela dominação colonial e imperialista e que, assim,
assistiu seus principais processos econômico-políticos se desenvolverem de
maneira subordinada e repletos de contradições. A luta revolucionária adquire na
análise histórica de Sodré um sentido centralmente anticolonial. Diz ele, “O
Brasil é ainda suficientemente colonial para que se denunciem […] a presença do
passado, e do passado distante, num momento em que se processa a mais acelerada
transformação de sua história.” [SODRÉ, 1967, p. 73]. Moderno e Colonial são
pares modais em sua obra, contradição estrutural da formação brasileira que
estrutura seu desenvolvimento econômico político à guisa da teoria leniniana do
desenvolvimento desigual sob a égide imperialista. Da passagem do Brasil de
colônia a país independente, Sodré sublinha:
“Aquilo que, na estrutura econômica colonial, devia permanecer
colonial, uma vez que não perturbava, mas ajudava a engrenagem do
desenvolvimento capitalista, posto na etapa industrial, permaneceria sem
ameaça, conciliando-se com os fatores externos, aliando-se a eles,
submetendo-se às suas injunções. O que permaneceria era a essência do sistema,
alterado em aspectos formais, mudando de fisionomia, sofrendo transformação
inevitável. Sólido, entretanto, em suas bases, alicerçadas no tempo, dotado de
vigor incontestável. É essa estrutura colonial, que permanece inviolada, que se
transfere ao cenário de país independente, do ponto de vista político, e tem
longa vida dentro dos novos moldes, de sorte a chegar aos nossos dias.” [SODRÉ,
1967, p. 84-85].
A
estrutura reminiscente do colonialismo que Sodré enfatiza trata-se dos dois
pilares centrais da formação econômica brasileira: o latifúndio e a escravidão.
Evidentemente que não passam incólumes pelos diversos processos históricos, contudo,
em sua essência, ressalta a absurda estabilidade de seus elementos principais.
No caso da abolição, Sodré enfatiza:
“No conflito entre o colonial e o moderno, de que o nosso país, na
época, era palco, o trabalho escravo não tinha mais lugar. Deixando de parte
muitos de seus aspectos, que não podem ser discutidos numa síntese, resta-nos
indicar o mais interessante deles: a ausência de condições para assimilação, no
mercado de trabalho existente, do número relativamente avultado de libertos,
não só pela falta de oportunidade como pela falta de preparação daqueles para
concorrer no quadro em que apareciam trabalhadores livres, nacionais e
estrangeiros, particularmente estes, com outra preparação.
Esse aspecto importante da Abolição, que não tem ocupado a atenção
dos nossos estudiosos e que tem arrimado, na sua inconsistência de argumentos,
os erros vulgares, que vivem da mera repetição e que, até hoje, proclamam
inverdades e tolices, como a lenda da preguiça brasileira, da incapacidade para
determinados trabalhos, e ligam tais deficiências à origem de cor dos elementos
que passaram a constituir camada flutuante, sem condições para ser absorvida
pela estrutura vigente da produção.” [SODRÉ, 1967, p. 98-99].
A
gênese colonial da formação histórica do capitalismo brasileiro é a
responsável, segundo Sodré, pelas contradições aviltantes de que o Brasil é
palco no século XX, no momento de notórias transformações econômicas e sociais,
nas décadas de 1950 e 1960. O desenvolvimento desigual tem como consequência o
aumento da miséria acompanhando o aumento do desenvolvimento industrial, com as
máquinas, automações e tecnologia, não se supera, contudo, o estado letárgico
de setores estruturalmente arcaicos de nossa economia (como a construção civil
e a agricultura, por exemplo). O desenvolvimento brasileiro é, para Sodré, o
desenvolvimento de suas próprias contradições estruturais ainda a ser superadas
e que se avolumam nesse interregno:
“No século XX, vamos assistir, no Brasil, ao aparecimento de novas
técnicas de produção. Elas são solicitadas, na medida em que se alteram as
condições de existência da população. São técnicas de transporte, de
aparelhamento portuário, de exploração agrícola, de produção industrial. São
técnicas destinadas também a afetar o padrão de vida, pela introdução de
utilidades e mesmo de diversões até então desconhecidas ou praticamente
reduzidas. O seu uso se generaliza, o interesse por elas se estende a várias
camadas da população, muito mais às camadas urbanas, está claro, do que às
camadas rurais, muito mais nas zonas em desenvolvimento do que nas zonas
estacionárias ou retrógradas. Porque o quadro brasileiro, através de quatro
séculos de atividade, mostrará apenas isso: deslocamentos periódicos de
culturas, de processos de exploração, de espaços a explorar, deixando atrás o
vazio, o empobrecimento, o atraso, correspondendo, assim a uma dispersão enorme
de energias, a um malbaratamento de recursos de toda ordem, sem encadeamento,
sem continuidade, sem substância, sem herança, — por força da estrutura
colonial a que estávamos subordinados.” [SODRÉ, 1967, p. 103].
A
esse processo, Agustín Cueva, importante marxista equatoriano, caracteriza como
desenvolvimento “oligárquico-dependente” do capitalismo latino-americano
[CUEVA, 1983, p. 81]. Em síntese, a colonização da América Latina se relaciona
com o processo da acumulação primitiva em escala mundial, que “além de implicar
a acumulação sem precedentes em um dos polos do sistema, supõe necessariamente
a desacumulação, também sem precedentes, no outro extremo”, ou seja,
evidencia-se que “o movimento metropolitano de transição ao capitalismo, ao
invés de impulsionar, freou o desenvolvimento desse modo de produção nas áreas
coloniais” [CUEVA, 1983, p. 24-25]. Dessa forma, a América Latina pós-colonial
caracteriza-se por uma dispersão das forças produtivas e baixíssima
produtividade que sequer é capaz de auto-abastecer a população, de maneira que,
por exemplo, “no Brasil […] a importação de alimentos representa, ao longo de
todo o século XIX, pelo menos a quinta parte do valor total das importações”
[CUEVA, 1983, p. 33]. A estruturação
subordinada e arcaica da economia
latino-americana nessa longa transição, o emprego das terras para cultivo de
exportação, por conseguinte, a manutenção da estrutura latifundiária, o
recrudescimento da exploração da força de trabalho em regimes arcaicos,
sintetiza um quadro que, segundo Cueva, “limita […] as incipientes
possibilidades de acumulação surgidas com a atividade primário-exportadora,
também freada em seu desenvolvimento por múltiplas relações pré-capitalistas de
produção” [CUEVA, 1983, p. 34].
Assim,
Agustin Cueva “dialetiza e precisa” e afirmação de Ruy Mauro Marini, a respeito
da dependência latino-americano, segundo o qual “não é porque foram cometidos
abusos contra as nações não industriais que estas se tornaram economicamente
débeis, é porque eram débeis que se abusou delas” [MARINI in TRASPADINI e
STEDILE, 2011, p. 143]. Portanto, para Cueva, a essência do subdesenvolvimento
não é mais que o resultado da exploração das burguesias dos países
desenvolvidos sobre as nações mais débeis, em que se reproduz “em escala
ampliada […] os mecanismos básicos de exploração e dominação”, processo que tem
como base a, assim chamada, “herança colonial”, que nada mais é do que a
“incorporação da América Latina ao sistema mundial”, em seu estágio
imperialista, “sobre a base de uma matriz econômico-social preexistente”, esta
moldada em estreita relação com o “capitalismo europeu e norte-americano”
[CUEVA, 1983, p. 23]. A essência do desenvolvimento oligárquico-dependente
latino-americano, portanto, é que “o capitalismo não se implante aqui mediante
uma revolução democrático-burguesa que destrua de maneira radical as bases da
antiga ordem”, da mesma forma que “se desenvolva subordinado à fase
imperialista do capitalismo” [CUEVA, 1983, p. 81].
É
sobre esta base dinâmica-processual que se debruça Sodré. O século XX
brasileiro abre, após a Segunda Guerra, a luta política e social, em dimensões
nunca antes vistas no país, entre uma alternativa de desenvolvimento nacional
autônoma e soberana contra o status quo da subordinação ao
imperialismo, o desenvolvimento oligárquico-dependente.
“No quadro geral da economia brasileira de hoje, o espetáculo
essencial consiste na luta que se estabelece entre as duas forças em presença:
de um lado, as que estão ligadas à economia nacional já estruturada e em
momento decisivo de seu desenvolvimento, a indústria que fornece o mercado
interno e que, independente das entidades congêneres estrangeiras, delas sofre
a concorrência e as pressões consequentes; os pequenos-proprietários rurais,
que não encontram horizontes para desenvolver e aproveitar os recursos de suas
terras; […] o comércio que tem o seu campo no mercado interno, colocando
produtos nacionais; alguns setores agrícolas fundamente feridos e lesados pela
concorrência externa internacional; — de outro lado, aquelas que estão ligadas
ao capitalismo imperialista: a dos grandes proprietários rurais ligados à exportação,
os setores industriais dependentes ou acorrentados às empresas estrangeiras
estabelecidas no país, os grupos mercantis dependentes da importação de
produtos acabados.
[…] Nenhuma fonte de riqueza nacional escapou à rigorosa,
minudente e precisa fiscalização do imperialismo. A grande lavoura, cujos
interesses são colocados natural e espontaneamente ao lado daquele
imperialismo, porque não tem condições para subsistir, em seus moldes atuais,
como economia nacional, entrega-lhe considerável parte de seus lucros. As
atividades industriais são obstadas ou dificultadas, ou favorecidas, conforme
suas ligações externas. Os recursos minerais, em torno dos quais a luta se
torna a mais acirrada, são colocados à disposição dos monopólios estrangeiros
através de contratos curiosos, sonegados ao conhecimento público e ao seu exame
e debate. O problema da exploração petrolífera, entretanto, a propósito do qual
os campos se dividem com impressionante clareza, de tal sorte que todas as
máscaras são arrancadas, encontram finalmente, a solução compatível com a fase
de estruturação da economia nacional e denuncia a primeira grande vitória
brasileira na luta que se desenvolve sem tréguas. […] O imperialismo busca, por
todos os meios, colocar fora da lei a defesa do interesse nacional.” [SODRÉ,
1967, p. 108-109].
Esta
longa passagem sintetiza o quadro econômico-político essencial do século XX
brasileiro nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento
tardio do proletariado brasileiro, bem como da própria indústria, coloca em
choque violento as contradições estruturantes do próprio sistema, nas décadas
de 1950 e 1960, é quando a “herança colonial” se coloca a nu diante das lutas
sociais de um proletariado que procura amadurecer sua luta de massas, seu
próprio Partido e sua intelectualidade orgânica através do profundo debate
teórico do qual o país é palco à época. “O colonialismo econômico […] não sofre
pausas por si mesmo e nem adota transigências. Seu caminho é […] um quadro de
empobrecimento, quando não de miséria. Suas necessidades correspondem […] a um
quadro de espoliação” [SODRÉ, 1967, p. 111] — para Sodré, menosprezar a
dimensão anticolonial na luta política revolucionária, portanto, é “perder
o fio da história”.
Diante
disso, é uma absurdidade sem tamanho reduzir um intelectual como Nelson Werneck
Sodré, com mais de 50 livros e 3 mil artigos publicados, pesquisador incansável
da realidade econômica, política, social e cultural brasileira, a uma mera querela
anacrônica sobre o “feudalismo” na América Latina. A problemática é muito mais
profunda e complexa, envolve múltiplas determinações e categorias, e só pode
sair do terreno impotente da escolástica na medida em que for estruturado pela
práxis, ou seja, pelo fio condutor da Revolução Brasileira. Assim sintetiza
Agustín Cueva sobre essa questão:
“Não vem ao caso reabrir a discussão relativa ao caráter feudal ou
capitalista da sociedade colonial, verdadeiro diálogo de surdos, na medida em
que cada contendor envereda por caminhos teóricos distintos. Convém, no
entanto, esclarecer que quando falamos, em termos marxistas, do modo de
produção escravista ou feudal, não estamos manipulando tipos ideais,
construídos com os traços mais “significativos” do “modelo” europeu; queremos
dizer, simplesmente, que a estrutura econômico-social herdada do período
colonial se caracterizou por um baixíssimo nível de desenvolvimento das forças
produtivas e por relações sociais de produção baseadas na escravatura e na
servidão, fato que constituiu um handicap [desvantagem] — para
dizer o mínimo — para o desenvolvimento posterior de nossas sociedades. Isto
não significa negar a conexão evidente das formações escravistas ou
feudais da América Latina com o desenvolvimento do capitalismo em escala
mundial.” [CUEVA, 1983, p. 26].
3. Os Intelectuais e a Revolução Brasileira
A
partir de Sodré e de sua obra, é possível nos aproximarmos de algo para além da
síntese de estudos sobre a realidade brasileira. É possível nos afeiçoarmos da
gênese própria do marxismo brasileiro e, ao nos colocarmos na tarefa de
analisarmos outros autores, ou seja, o marxismo brasileiro no geral, de tecer o
fio que medeia a história sociocultural do pensamento revolucionário de
nosso país.
Trata-se
de exercício fundamental, pois no desenvolvimento mundial do capitalismo, o
fenômeno da particularização das ciências acompanhou o crescente
desenvolvimento e complexificação das forças produtivas e das relações sociais.
Se Marx dizia que, sob a égide d’O Capital, as relações humanas se aparentavam
para nós, cada vez mais, como relações entre coisas, as ciências burguesas
acompanham também esse processo ideológico de reificação. Assim como expõe o
próprio Sodré:
“É interessante lembrar, desde logo, os inevitáveis equívocos da
sociologia, ciência de uma época de transição, na qual despontam todos os
sinais de declínio de uma classe. As origens dessa nova ciência nos mostram,
com muita clareza, como surgiu da necessidade de forjar um método de estudo das
leis e da história do desenvolvimento social contrapondo-se, ao mesmo tempo, à
economia e deixando-a de parte. Daí a tendência irrecorrível para a apologética
que a sociologia assume, desde os seus primeiros episódios.
A desobediência aos novos métodos de pesquisas e de interpretação,
colocados no terreno científico na segunda metade do século XIX, e hauridos no
campo da luta econômica, criaria o quadro propício ao aparecimento autônomo da
sociologia que, conforme acentuou Lukács, “quanto mais elaborou o seu método
particular, tanto mais formalista se tornou, tanto mais substitui, à pesquisa
das reais conexões causais na vida social, análises formalísticas e variados
raciocínios analogísticos”. Em nosso próprio país, desde que a sociologia
angariou cultores, verificamos o esforço para o seu isolamento, pretensamente
especialístico, uma sorte de emancipação que corresponde ao rompimento de todos
os vínculos que a prendem à história e a conduzem, sem remédio, ao uso e abuso
de exaustas abstrações, inteiramente estranhas à realidade.” [SODRÉ, 1967, p.
115-116].
Dito
isso, na obra de Sodré, a chamada luta ideológica ocupa espaço importantíssimo.
A luta por uma cultura nacional, popular, verdadeiramente autêntica, passa pelo
estudo e combate da “Ideologia do Colonialismo”. Esta se demonstra em várias
formas. De maneira mais evidente, Sodré aponta como no período colonial, da
formação de fato do Estado Brasileiro, a Ideologia do Colonialismo assumia um
duplo caráter a partir do “aparecimento dos pontos de vistas opostos: num
deles, colocavam-se os que só encontravam solução para o Brasil na cópia pura e
simples de modelos externos”, do outro lado do aparente antagonismo se
colocavam “os que invectivavam essa posição de subalternidade, pretendendo uma
visão objetiva e realista para os problemas brasileiros”, contudo, apesar do
embate, ambas as posições se colocam em absoluta unidade na medida em que
mantinham-se no “campo idealista” [SODRÉ, 1967, p. 133]. Ou seja, a Ideologia
do Colonialismo operava, aqui, ao alienar da totalidade do debate, a própria
realidade nacional. Porém, sejamos claros. Não se trata, aqui, de “ato de
vontade”, como se houvesse em questão “duas ou várias soluções, e a escolha má
fosse feita entre elas”, muito pelo contrário, “no quadro da estrutura colonial
— que avança além do período colonial — a imitação, a cópia, a aceitação de
postulados externos sem exame, […] abrangendo desde instituições até ideias
literárias, não era uma escolha, era o único caminho.” [SODRÉ, 1967, p.
135-136].
Se
o próprio sentido da “herança colonial” era a manutenção, em maior ou menor
medida, seguindo a dinâmica sócio-história brasileira em suas distintas fases,
dos dois pilares da estrutura colonial, a saber, a grande propriedade e a
escravidão, a Ideologia Colonial era a própria subjetivação social do processo
de domínio colonialista.
“Para manter as relações antigas, herdadas dos tempos coloniais,
torna-se necessário convencer os povos assim originados de que são incapazes,
por diversos motivos, de enfrentar a etapa industrial; de que condições
ecológicas os subordinam ao fornecimento de matérias-primas; de que a relação
social existente é justa e representa avaliação exata da capacidade humana, em
termos até de fisiologia. Daí os preconceitos que se desenvolvem: preconceitos
de clima, — o clima tropical não se presta para as raças superiores e deve ser
relegado às plantações de gêneros alimentícios e matérias-primas; preconceitos
de raça, — a raça negra, que constitui a massa de trabalho, nas regiões de
passado colonial, na América, é geneticamente destinada ao esforço físico e não
tem habilitação para outra qualquer espécie de esforço; preconceitos de toda
ordem: incapacidade das populações, inadaptação ao regime democrático,
insuficiência orgânica para as técnicas avançadas, impossibilidade de
capitalização, incapacidade para o esforço continuado, para a criação
artística, para a originalidade, para a organização política.” [SODRÉ, 1967, p.
137].
E
ainda:
“Nesse sentido, devemos considerar bem como, muito tempo depois de
ficar libertado da escravidão, o negro permaneceu submetido à violência dos
preconceitos, rotulado que estava. E ainda é indispensável considerar, nessa
apreciação, um aspecto que tem sido propositadamente omitido: o negro continua
a fornecer, puro ou mestiçado, o grosso da massa de trabalho, em nosso país. Se
isolarmos uma consideração da outra, corremos o risco de cuidar erradamente o
problema: relações de raça jamais podem isolar-se das relações de classe.”
[SODRÉ, 1967, p. 147].
Na
mesma seara, Sodré aborda ainda o mito da democracia racial:
“É impossível esquecer que os cruzamentos entre brancos e negros
de uma classe, a classe dominante, e negros de outra classe, a classe dominada,
fossem os seus elementos escravos ou fossem livres […].
No quadro, é importante destacar ainda […] que o componente negro
dos cruzamentos era feminino, em maioria esmagadora dos casos, e sabemos bem
que um dos traços mais nítidos da sociedade que começou a vigorar na época
moderna foi a submissão da mulher, de seu papel secundário, do plano inferior
em que foi sempre colocada. […] Jamais acudiria ao espírito de um branco
colocar os seus descendentes brancos no mesmo nível dos seus descendentes
mulatos. Estes permaneciam na classe a que pertencia o componente negro, a
escrava, a liberta, a mucama, a mulata. Afirmar, pois, que a miscigenação
suavizou as relações de raça e de classe no Brasil é falsidade transparente,
sem nenhuma significação objetiva.” [SODRÉ, 1967, p. 149-150].
A
Ideologia do Colonialismo, portanto, sustenta o racismo estrutural de nossa
“herança colonial” no passar das eras. Para Sodré, a gênese capitalista no
Brasil não se deu colocando os negros à parte do processo, ao contrário, são
parte fundamental do sistema, condenados pelos tempos à massa de trabalho e ao
“destino” do trabalho braçal. A ciência, a arte, a cultura, em sua égide
burguesa no país, tratam de excluir os negros, de transplantar das terras
europeias e norte-americanas suas “raízes” culturais. Sodré, dessa forma,
coloca em primeiro plano a questão racial. Se os pilares do colonialismo
brasileiro são a grande propriedade e a escravidão, para a superação de nossa
“herança colonial” não há como subestimar ambos os elementos, em inter-relação
indissociável de raça e classe.
“Na medida em que conquistarmos os objetivos sucessivos que
balizarão mudança tão profunda, as relações de raça tenderão a alterar-se em
seus fundamentos.
[…]
A autenticidade brasileira, nesse desenvolvimento, não será
encontrada senão pela valorização do negro […], pela reposição em termos de
realidade do formidável e algumas vezes secular esforço efetivado pelo negro e
seus descendentes, puros ou misturados, na formação, no desenvolvimento e na
libertação do Brasil.” [SODRÉ, 1967, p. 161].
Dessa
forma, ao tratar da Ideologia do Colonialismo e, no geral, da Luta pela
Cultura, Nelson Werneck Sodré procede numa crítica impenitente à
intelectualidade burguesa. Nesse sentido, critica o isolamento dos intelectuais
brasileiros da realidade do povo brasileiro, denuncia o modismo contaminante na
academia e nos meios literários que prioriza as últimas ideias do primeiro
mundo em detrimento do estudo crítico da realidade nacional, procede, em
síntese, na crítica do intelectual burguês enquanto figura desumanizada, o
qual, apartada da realidade de seu povo, fechado em seu gabinete, longe da vida
das massas, não pode sentir os problemas concretos, não pode adquirir o senso
de urgência revolucionário de organizar sua luta e sua produção intelectual, de
organizar, enfim, o trabalho ideológico num sentido consciente de classe e
nação.
“Humanizar o especialista é, assim, uma das tarefas a que a
renovação dos estudos brasileiros se vem propondo, obrigando-o a olhar o que se
passa em redor, a sentir a realidade, a compreender aquilo que não está nas
suas fórmulas, a responder adequadamente ao concreto, fora de cujo campo tudo
definha e se corrompe. O novo corresponde, por isso mesmo, a uma visão de
conjunto, em que as partes se compõem na sua relatividade, e denuncia todas as
ideias como historicamente condicionadas, isto é, peculiares a determinado
tempo e a determinado meio, e jamais eternas e absolutas, receitas universais
diante das quais todos se deveriam curvar sem análise. Quando determinada
formulação, como encantatória, polariza as atenções, ganha o pensamento da
generalidade, e aprofunda os seus efeitos, negá-la é mais do que uma
infantilidade, porque é um erro. Os que, ante o Nacionalismo, que agora empolga
nosso País, se colocam na atitude irônica, cética ou negativista, denunciam o
rompimento com a realidade, o desprezo pelo concreto, a aversão ao objetivo —
perderam o fio da história.” [SODRÉ, 1967, p. 166].
No
processo revolucionário é preciso formar intelectuais orgânicos do
proletariado. Intelectuais organizados e ativos no seio da classe trabalhadora.
Que correspondam aos seus anseios e aos seus interesses objetivos. A batalha
das ideias é parte fundamental da luta revolucionária e arma também a luta
concreta das ruas. Num país de “herança colonial”, trata-se de tarefa
extremamente árdua diante do atraso e das profundas contradições que estruturam
nosso país, da ideologia imperialista que estrutura nossa educação, nossa
literatura, nossa ciência, nossa sociologia. Mas uma classe que não pense por
si própria está fadada ao fracasso. A formação de uma intelectualidade
orgânica, portanto, vai além da formação de quadros. Segue no sentido da
organização de uma estrutura política própria que dê cabo da necessidade última
da independência política do proletariado. Pensar a revolução, nesse sentido, é
pensar a luta anti-imperialista, é pensar, portanto, a nação em sua
processualidade histórica irreversível, sua gênese sócio-histórica, no sentido
de extrair do concreto o devir último da luta revolucionária na superação das
condições de opressão. Este é o sentido do autêntico Nacionalismo em Nelson
Werneck Sodré. Para concluirmos, em síntese:
“O Nacionalismo aparece, pois, num cenário histórico em que é a
saída para uma situação real difícil, cujos sintomas ocorrem na existência
cotidiana. Corresponde a um quadro real, a necessidades concretas — não foi
inventado, não surge da imaginação de uns poucos, não vive da teoria mas da
prática. É uma solução espontânea, e esta aparece como uma das suas limitações
e traduz a dificuldade em assumir formas organizadas de luta política.
Organizado, é invencível. O teor de paixão que o acompanha, sinal positivo de
sua força e não sintoma de fraqueza, assinala a generalidade e a profundidade
de seus efeitos: revela que o Nacionalismo é popular, o que não pode
surpreender a ninguém, uma vez que só é nacional o que é popular.” [SODRÉ,
1967, p. 181].
*Vinícius Okada é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela USP de São
Carlos e mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na
FAU-USP. É militante do PCB e da UJC
na cidade de São Paulo.
Referências
CUEVA, Agustin. O desenvolvimento do capitalismo na América
Latina. São Paulo. Global, 1983.
CUNHA, P. R.; CABRAL, F. (Orgs.). Nelson
Werneck Sodré entre o
sabre e a pena. São
Paulo: Editora da UNESP, 2006.
CUNHA, P. R. Um olhar à esquerda:
a utopia tenentista na construção do pensamento
marxista de Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Revan,
2002.
DEL ROIO, M. Sodré e a dialética da
formação social brasileira. Revista Crítica Marxista, n. 42, p.85-102.
2016.
LENIN, V.I. Imperialismo: estágio superior do capitalismo. São Paulo, 2012.
LOSURDO, Domenico. Antonio Gramsci: do liberalismo ao “comunismo
crítico”. Rio de Janeiro. Revan, 2006.
______. Fuga da história? A revolução russa e a revolução chinesa
vistas de hoje. Rio de Janeiro. Revan, 2004.
MAESTRI, Mário. Nelson
Werneck Sodré, um
general diferente. PCB, 2011. Disponível em:
https://pcb.org.br/portal2/1755/nelson-werneck-sodre-um-general-diferente/ -
Acesso em: 21/03/2021.
MARINI, Ruy M. Vida e obra. 2. ed. São Paulo:
Editora Expressão Popular, 2011.
SODRÉ,
N. W. Introdução à revolução
brasileira. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1967.
SODRÉ, N.W. Memórias de um
soldado. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1967.
[1] Vinícius
Okada se dedica a estudar a
arquitetura moderna brasileira a partir da obra do arquiteto e militante
Rodrigo Brotero Lefèvre (1938-1984), com foco central no debate político
brasileiro durante as décadas de 1960 e 1980.
[2] Essa corrente
paulista da arquitetura moderna filia-se à corrente interpretativa de
intelectuais brasileiros marxistas da Arquitetura Nova que
marcou, em 1967, um rompimento com a arquitetura paulista e suas relações
com o projeto ‘nacional-desenvolvimentista’ da arquitetura brasileira
personalizado nas figuras de Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas (escola paulista
de arquitetura).
[3] Consulta à página do PCB: https://pcb.org.br/portal/docs/historia.html.
[4] Após a
reviravolta de 1956, surge uma nova perspectiva de ação na Declaração Política
do PCB, em 1958, voltada para a ampliação dos espaços democráticos. Esta
declaração provoca conflitos internos e a criação, em fevereiro de 1962, do
PCdoB. O
histórico relata que o golpe de abril de 1964 não encontrou o Partido em
condições de resistência imediata, impondo ao PCB e ao conjunto das forças
democráticas e de esquerda mais um duro período de repressão e clandestinidade.
Entre 1973 e 1975, um terço de seu Comitê Central foi assassinado pela
repressão, e milhares de militantes foram submetidos à tortura, alguns até a morte,
dentre os quais o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho.
Tendo sido testemunha deste triste período, todas estas arbitrariedades e
atrocidades me marcaram também profundamente. Conseguindo se reestruturar
desde 1979, o PCB realizou, em dezembro de 1982, o seu VII Congresso, no qual
foi lançada a proposta da alternativa democrática.
[5] Em
janeiro de 2006, o PCB rompe sua participação nos fóruns da CUT (Central Única
dos Trabalhadores) por entender que esta entidade se reduzia a ser apenas ‘um
braço governamental’. No XV Congresso, realizado em abril de 2014, ao
analisar a conjuntura brasileira, o PCB entende que a chegada do PT ao governo
provocou uma ‘submissão consentida dos trabalhadores’ acompanhada de um
‘tratamento compensatório à fome e à miséria’.
[6] A antiga União Soviética (1922-1991) se propôs a ser um estado ateu no qual a religião foi amplamente desencorajada e, às vezes, brutalmente perseguida, embora mais de um terço dos habitantes do país professasse uma crença religiosa, entre elas o cristianismo e o islamismo. O estado estabeleceu o ateísmo como a única verdade científica. Foram proibidas as críticas ao ateísmo ou às políticas antirreligiosas do estado. Elas poderiam levar a aposentadoria forçada, detenção e prisão. Embora houvesse o direito à crença, havia também a tortura de muitos religiosos, o envio deles para campos de prisioneiros, para o trabalho forçado ou hospitais psiquiátricos. Foram executados vários bispos e padres, sendo as propriedades da Igreja confiscadas para uso público. Cerca de 600 mosteiros ou conventos foram liquidados durante este período e ocorreram execuções em massa generalizadas de monges e freiras. Essa perseguição religiosa era organizada sob o pretexto de serem esses religiosos opostos ao regime e uma herança nefasta do passado czarista. Na realidade, procurava-se eliminar a religião e o próprio conceito de Deus. Além disso, a URSS anexou novos territórios, incluindo a porção oriental da Polônia. Nos territórios ocupados, muitos clérigos foram presos e enviados para prisões ou campos de prisioneiros por longos períodos. Na época de Stalin, o alvo principal era o Vaticano. Com o surgimento dos países da chamada ‘cortina de ferro’, esta política era destinada a isolar os países comunistas da influência católica. Estima-se que 50.000 padres tenham sido executados entre 1917 e o período após Stalin (entre 1953 a 1964).
[7] As memórias desse exílio estão
contadas no livro organizado por Pedro Celso Uchôa e Jovelino Ramos Memórias
do exílio, Brasil 1964-19??: 1. De muitos caminhos. Vol. 1. Editorial
Arcádia, 1976 (edição brasileira de setembro de 1978), que foi publicado com o
apoio de vários intelectuais brasileiros, em particular de Nelson Werneck
Sodré. Meu pai optou por não se exilar, teve os direitos políticos cassados e
chegou a ser preso duas vezes.
[8] Em
2016, as novas relações foram formalizadas no histórico encontro entre o Papa
Francisco e o Patriarca Russo Kirill, em Havana.
[9] O longo
e complexo diálogo institucional da Santa Sé com as autoridades governamentais
chinesas começou com o Papa João Paulo II e teve continuidade com o Papa Bento
XVI. Este diálogo ficou registrado na "Carta do Papa Bento XVI aos
católicos chineses", de 27 de maio de 2007, na qual Bento
XVI argumenta sobre as possibilidades de mudança nas relações do Vaticano com a
China. Nesta carta, ele salienta que a história caminha e evolui. Explica que
mudando o contexto histórico nos quais os homens e as nações interagem entre
si, muda igualmente a organização do pensamento, a elaboração dos conceitos e a
interpretação das fórmulas sociais subjacentes. Posteriormente, a "Mensagem
do Papa Francisco aos católicos chineses e à Igreja universal" de 26
de setembro de 2018 acrescenta à reflexão de Bento XVI, a proposta de um
olhar voltado para o futuro, focalizando a ‘cura da memória para virar a
página’.
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