29. REFLEXÃO SOBRE GOLPE E DITADURA
REFLEXÃO SOBRE GOLPE E DITADURA
- ENTREVISTA COM NELSON WERNECK
SODRÉ –
Em 4 de setembro de 2020, Antonio
Serra, professor aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF), me enviou
mensagem na qual relata seu encontro com Nelson Werneck Sodré em meados dos
anos oitenta. Considero a entrevista por ele e seus colegas realizada para este
documentário como excepcional. Ela é fantástica e empolgante na descrição do
processo histórico e de seus personagens. É um depoimento de grande força,
honestidade intelectual, clareza, compromisso com a verdade e com os
ensinamentos da História. Trata-se de um documento extremamente atual, pois nos
apresenta uma lúcida análise sobre a dinâmica política brasileira e sobre as
condições de golpe e implantação de uma ditadura, em nosso país.
“Quando em 1986-7, estávamos
participando pela UFF, da produção do documentário "Lembrai-vos de
37", sobre o Estado Novo, seus antecedentes e consequências - conta Antonio
Serra -obtivemos do mestre Nelson Werneck Sodré depoimento
precioso, colhido em sua casa.” Ele assim sublinha o rigor desta análise de
Nelson Werneck Sodré: “Chamou-me a atenção a exposição metódica, meticulosa
e abrangente que fez desse período tão importante e contraditório de nossa
história. Porém, mais que tudo, a postura simples, modesta, sem qualquer
enfatuamento ou autorreferência que uma personalidade tão famosa e respeitada
como ele poderia dar-se ao luxo de assumir. Mas, pessoalmente, meu primeiro
registro de NWS foi durante o preparatório de vestibular para direito, lendo,
encantando-me e absorvendo seu valioso Formação Histórica do Brasil.”
Antonio Serra autorizou a publicação
deste seu comentário e da entrevista com Nelson Werneck Sodré realizada, em
meados dos anos oitenta, para o documentário audiovisual "LEMBRAI-VOS
DE 37” sobre o período do Estado Novo (1937-1945) no Brasil e seus
antecedentes. Destacou ter sido uma realização do Núcleo Audiovisual da UFF e
do Departamento de Ciência Política da UFF - Universidade Federal
Fluminense, em 1987-1988, com direção de Wilson Paraná e roteiro de Maria
Antonieta Leopoldi, Eduardo Gomes e Wilson Paraná.
Após esta participação no blogue, nós
continuamos a nos comunicar sobre vários temas de minhas publicações, a
respeito das quais ele me enviou comentários muito interessantes que
estimularam nossas conversas virtuais. Descobri, então, que tínhamos um amigo
em comum, Sérgio Caldieri, que fora aluno dele na faculdade, e os coloquei
novamente em contato, participando indiretamente desse alegre reencontro dos
dois. Em 30 de dezembro de 2020, Antônio Serra me escreveu:
“Oi, Olga, contei para meu amigo
Drauzio Gonzaga[1]
o que você vem fazendo em torno do blog NWS e ele ficou muito interessado em
ver de perto o trabalho e principalmente em falar com você.”
Prontamente enviei mensagem para este
amigo, em 01 de janeiro de 2021, e ele me respondeu no mesmo dia:
“Tudo bem, Olga? Quanto tempo e
quão boas lembranças de você quando colaborava conosco no SOCII.
Estou interessado sim, e Serra me passará os contatos. Abraços saudosos,
torcendo para poder nos reencontrar presencialmente.”
Eu também tenho lembranças muito boas
deste grupo de pesquisadores na área de ciências sociais, mas são lembranças
muito antigas, do início de minhas atividades de pesquisa. Perdi completamente
contato com eles, depois que fui para a França. Recentemente, estabeleci
contato com outro antigo membro do SOCII, Michel Misse[2].
Não tive mais notícias de Drauzio Gonzaga nem de Antonio Serra, até que, em 26
de fevereiro de 2021, Antonio me escreveu:
“Prezada Olga,
Estou em falta por não comentar suas
páginas. É que tenho estado ansioso acompanhando a situação de nosso amigo Drauzio,
cujo adoecimento se agravou, e demonstrou ser algo bem mais sério. Ele foi
operado ontem para retirar tumor e segundo a família estava bem.”
Partilhei com ele problemas
semelhantes no enfrentamento do câncer, e, em 12 de maio, Antonio voltou a me
escrever:
“Oi, Olga, eu por enquanto
caminho, já tomei as duas doses da vacina. E você, como vai?
Mas nosso amigo Drauzio faleceu. Após
a cirurgia ele sobreviveu duas semanas, mas além de extremamente debilitado já
estava com a situação muito grave. Nem conseguimos vê-lo nem falarmos com ele.
Conforme o desejo dele, as cinzas foram deixadas em Ubatuba, praia que ele
sempre frequentava nas férias e feriados. Deixou muitas saudades nos amigos.”
Não há palavras para descrever o
choque diante de uma morte tão repentina e fulminante. Ainda no começo do ano,
planejamos nos reencontrar depois de tantos anos longe um do outro... De
repente, dois meses depois, ele é arrancado do convívio de seus familiares e
amigos, sem que pudéssemos nos rever...Fica a lembrança do agradável e
combativo compartilhamento intelectual no SOCII.
O texto da entrevista de Antonio
Serra com Nelson Werneck Sodré que publico a seguir, embora antigo, é
extremamente esclarecedor para a compreensão do contexto do golpe que implantou
a ditadura de Getúlio Vargas. É um documento valioso pela descrição acurada das
forças nacionais – civis e militares – e internacionais em ação para a
configuração do reiterado cenário de golpe e ditadura em nosso país. Embora
crítico desse processo liderado por Getúlio Vargas, Nelson Werneck Sodré
sublinha sua grandeza como estadista e intérprete da ascensão do capitalismo
brasileiro. Reproduzo, a seguir, a entrevista tal como me foi enviada,
inclusive com a indicação dos cortes para a filmagem e o modo informal de se
exprimir na linguagem oral da entrevista.
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DEPOIMENTO DO HISTORIADOR NELSON WERNECK SODRÉ
ENTREVISTADOR – Quais foram as causas do golpe de
37, na sua opinião?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – As causas foram
múltiplas e muito complexas, é preciso considerar, em primeiro lugar, que os
anos 30 são os anos da ascensão nazista e fascista no mundo. Havia já regimes
ditatoriais como o de Mussolini e o de Salazar que eram vigentes, mas o grande
acontecimento é a ascensão de Hitler. A ascensão de Hitler em 33, na Alemanha,
marca o compasso vertiginoso do domínio fascista e nazista em todo o mundo.
Alastram-se ditaduras por todo mundo ocidental e cristão, e também oriental. De
modo que isso traz, na América Latina, grandes reflexos também. Há outras
causas, esse é o quadro externo, porque há causas internas também,
evidentemente. Havia uma grande agitação no país, agitação que vinha desde o
movimento de 1930, vitorioso. Movimento armado vitorioso pela primeira vez na
história brasileira e que chega ao poder. Mas, o regime estava se deteriorando.
O governo vinha encontrando inúmeras dificuldades, que culminaram em 1935, em
novembro de 35, com a chamada Intentona. A Intentona assinala o início de uma
repressão política violentíssima. Quer dizer, a partir daí aquele clima liberal
que tinha surgido com o movimento de 1930 começa a retroceder, e dá lugar a um
regime de repressão violenta, de censura, de obscurantismo, de capitulação das
forças democráticas, de capitulação do Congresso inclusive, que cedia às
pressões do governo e das forças reacionárias fazendo todas as leis que lhe
eram pedidas. As leis de exceção criando um ambiente de prelúdio de ditadura.
Mas, havia graves crises políticas, não só gerais, como regionais.
CORTE EM 2 MIN E 30 SEG
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Havia os problemas
internos, crises gravíssimas, o governo encontrava resistências muito grandes,
e havia também uma turbulência alastrada por todo o país. O movimento popular
era muito forte, as manifestações eram muito violentas. Havia tudo aquilo que a
reação batiza de agitação. E, evidentemente, começa a surgir uma forma de
reação a tudo isso, que é o anticomunismo. Através do anticomunismo importado
pelo avanço fascista e nazista no mundo, o governo começa a tomar as medidas de
repressão, e o Congresso vai concedendo todas as medidas, todas as leis
necessárias, armando o governo para que ele concentre os poderes. Mas, apesar
disso, havia resistências grandes, porque o governo do Rio Grande do Sul,
exercido por Flores da Cunha, detinha também um pequeno poder militar, com a
Brigada Militar do Rio Grande. Flores da Cunha recrutou os grupos armados,
chamados “Os provisórios”. Então, montou seu exército particular. Naquele tempo
os exércitos estaduais eram forças ponderáveis. Então, era preciso introduzir
um fator central poderoso, que era a Força Armada, Exército e Marinha, no caso.
E realmente desencadeia-se uma crise que se aprofunda até o momento em que o
governo exercido por Vargas, e os chefes militares, com Dutra e Góes Monteiro à
frente, se articulam para barrar o regime dito democrático, que já não era mais
democrático, e instituir um regime de força declarada, que seria chamado Estado
Novo.
ENTREVISTADOR – E como foi desencadeado o dia a
dia...?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – O desencadeamento foi
relativamente fácil. Não houve resistências. A preparação era mais ou menos
ostensiva. O que perturba o quadro é que havia uma campanha de sucessão
presidencial em andamento, com dois candidatos. O Armando Sales de Oliveira,
representando as forças de São Paulo, e o José Américo, que representava, mais
ou menos, as forças do Nordeste. José Américo tinha uma composição mais popular
do que Armando Sales, então era uma luta muito renhida e, como todo processo
eleitoral brasileiro, começou a descambar para a agitação, aquilo que chamam de
agitação, que é o livre jogo das ideias no fim das contas. É a controvérsia, é
a polêmica, é o contraste de correntes de opiniões. Então, era preciso barrar
isso, era preciso deter o processo de sucessão presidencial, resolver o
problema do Rio Grande do Sul, e tapar tudo isso com uma grande encenação que
era o comunismo. Foi isso que permitiu a montagem de uma articulação militar.
Então, era um golpe militar exercido por um civil, que era Getúlio Vargas. Ele
teve a habilidade de capitanear o golpe militar e preservar o seu poder, quer
dizer, a sua presença no poder. Mas, foi um regime militar que foi instituído
no país. O grande condestável do regime foi o Ministro da Guerra de então,
General Dutra.
ENTREVISTADOR – Qual seriam as grandes
consequências do golpe para o homem comum, o povo brasileiro?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Para o homem comum, para
os trabalhadores as consequências não foram muito grandes, porque Vargas era um
político muito hábil. Foi o maior líder, o maior dirigente que a burguesia
brasileira já produziu, e não produziu nenhum sucedâneo. Ele, evidentemente,
tinha uma habilidade extraordinária para o trato do problema político, e
começou a fazer a política que depois alguns sociólogos batizaram de populismo,
quer dizer, apesar do regime ser um regime discricionário, de censura, de
repressão violenta às manifestações políticas, fechamento do Congresso,
fechamento dos partidos políticos, censura à imprensa, a todos os meios de
comunicação, Vargas se comunicava com o trabalhador. São os célebres comícios
dele no estádio do Vasco da Gama, que era o grande estádio do tempo, onde ele
fazia aquele célebre discurso: “...trabalhadores do Brasil...”. E criou a
legislação, legislação que ele imitou do corporativismo italiano, que existe
até hoje, regulando o trabalhismo brasileiro, é o corporativismo. Toda a nossa
legislação é dessa época. Então, ele adquiriu prestígio. O fato é que o ditador
tinha prestígio, e através da campanha anticomunista, o governo tinha
prestígio, o regime conseguiu isolar as forças democráticas, e teve uma ampla
base política. Teve uma base de consenso, não de entusiasmo, mas de consenso.
Não houve oposição. O governo encarregou Francisco Negrão de Lima de percorrer
os Estados, avisando os governadores dos Estados que ia ser dado o golpe.
Encarregou Francisco Campos de elaborar uma Constituição nova, que Francisco
Campos copiou da Constituição polaca, por isso a Constituição ficou conhecida
como polaquinha, e, no dia 10 de novembro de 37, as tropas ocuparam, sem grande
estardalhaço, sem grande aparato, ocuparam o Congresso, ocuparam o Senado.
Fecharam o Congresso. Estabeleceram a censura, e Vargas à noite, pelo rádio, no
A Hora do Brasil, programa já celebrizado, ele deu a sua palavra de ordem e
mandou ler a sua Constituição. Mandou ler a polaquinha. E todo mundo abaixou a
cabeça, e no outro dia foi um dia como todos os outros.
ENTREVISTADOR – O Estado Novo trouxe alguma
consequência para a sociedade brasileira?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Para a sociedade
brasileira as consequências foram uma grande restrição à liberdade, condições
de trabalho mais duras, porque as reivindicações trabalhistas eram difíceis de
serem formuladas, e muito mais difíceis de serem disputadas, mas impulsionou
consideravelmente a expansão das relações capitalistas no Brasil. O Estado Novo
foi próspero. Realmente, depois de 30, o Brasil entrou numa fase de
recuperação. Tinha havido a crise de 1929 que arrasou a economia do mundo
ocidental, e ecoou na América Latina toda, e no Brasil. Mas, o Brasil, através
do aproveitamento dos recursos internos, conseguiu sair da crise antes que os
Estados Unidos, antes que todos os outros países, os ditos desenvolvidos.
Naquele tempo não se usava essa nomenclatura, de subdesenvolvido, desenvolvido.
Mas, o fato é que, o Brasil, a sua economia, se recuperou antes, se recuperou
aceleradamente. Acelerou a recuperação por uma grande transferência de capitais
da área agrícola para a área industrial. Há essa passagem. Então, há um
desenvolvimento enorme das relações capitalistas, em que, realmente, a
indústria mostra as suas relações capitalistas na sua plenitude. Então, o
Brasil dá um passo à frente no avanço capitalista. Consolida o seu regime
capitalista que tinha dado os primeiros passos com a primeira Guerra europeia
e, depois, com o movimento de 1930. Então, o Estado Novo foi próspero. Quando
ele entrou em crise, aí houve a guerra, a grande guerra em 39, o Estado Novo é
de 37, e começou a declinar a prosperidade do Estado Novo. Mas, aí é outra
história. Então, ele tinha prosperidade, não estava em crise, não havia crise
no Brasil, o governo teve condições, inclusive, de obter o amplo apoio das
chamadas classes conservadoras.
ENTREVISTADOR – Qual foi o papel das Forças
Armadas?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Nós precisamos lembrar o
clima que se criou no país desde a chamada Intentona. Foi um clima de alta
repressão, violentíssima repressão, levantando o fantasma do comunismo. Então,
o anticomunismo se tornou a ideologia. Era a ideologia que passou a ser a viga
mestra do processo político, assustando terrivelmente não só a burguesia, mas a
classe média. Essa foi sendo domada, anestesiada pelo anticomunismo. E as
Forças Armadas, intensamente trabalhadas pelo anticomunismo. Erigidas em
salvadoras do regime, salvadoras do país. Deus, pátria, família, e tudo mais
que era possível ser salvo. Então, tudo isso cria um clima, de sorte que o
golpe em si, o ato de 10 de novembro de 1937, decorre mansamente,
tranquilamente, sem resistência. As resistências foram anteriores. Esboçadas
anteriormente porque havia um processo de sucessão presidencial, então havia
discursos políticos, havia discursos na Câmara, no Senado. Vislumbrava-se o golpe
e começava-se a esboçar a resistência, mas era uma resistência oral. Mas, havia
também uma tendência para o golpe, para o consenso de que se estabelecesse o
regime de força. Esse consenso vinha da alta burguesia alarmada pelo
anticomunismo, da classe média alarmada, e também das Forças Armadas alarmadas
pela ameaça do comunismo no mundo. Então, era um mundo em que a religião era o
anticomunismo, e Hitler o seu profeta. Então, havia aqui os seus apóstolos. E
esses criaram um clima tremendamente opressivo, que anestesiou todas as
resistências, e o golpe realizou-se mansamente. Agora, o papel das forças
armadas. Anestesiadas e embaladas no anticomunismo, elas queriam acabar com a
agitação. Eles chamam agitação, sempre chamam. Qualquer controvérsia, a luta das
ideias, o choque das opiniões, é agitação. Então, querem a paz. Porque ninguém
é mais pacifista do que militar. Ele quer a tranquilidade. Então, eles dão o
suporte para que se instale o Estado Novo e tornam-se a base do Estado Novo.
Não havia base política, não havia partidos organizados. Os Estados receberam
intervenção. Eles foram nomeados, os interventores. Os congressistas, postos em
disponibilidade, Vargas os nomeou para presidentes de autarquias, deu empregos
à maior parte deles. Então, houve um consentimento generalizado. Evidentemente,
algumas figuras que ficam insatisfeitas, mas também não tem significação. O
regime se instala tranquilamente, e passa a instalar também a repressão de uma
forma muito mais sistemática, porque não precisa pedir ao Congresso leis de
exceção. Ele já é de exceção. Estabelece-se uma Constituição que nunca foi
respeitada, nem precisava ser, a polaquinha, que era uma constituição de uma
ditadura, a ditadura polonesa do Marechal Pilsudski, quer dizer, pertencente ao
cordão sanitário estabelecido em torno da União Soviética, então era um regime
de força, significativa e confessadamente de força, mas teve, realmente, um
apoio generalizado. Apoio em diversas classes, inclusive em parcelas da classe
trabalhadora. Teve apoio dos intelectuais, o Estado Novo gozou da simpatia de
grande parte dos intelectuais. Não era como esse regime de 64, que recrutou
apenas o terceiro time da intelectualidade. Não. Getúlio recrutou grande parte
da intelectualidade com ele. Fundou revistas e estabeleceu a sua doutrinação, a
sua catequese. Quis criar uma ideologia própria dentro do anticomunismo, mas
uma ideologia própria, de base nacionalista. O Estado Novo foi nacionalista.
Então, ele rompe com a submissão e a pressão externa. Como? Deixando de financiar
a dívida externa. Então, tem um ato de soberania. É consertado com o credor,
não é um ato, assim, de confrontação com o credor. Como os credores estavam
também em grande dificuldade, porque havia crise desencadeada em 1929, há uma
composição com os credores, cessa o serviço da dívida. E, realmente, o Estado
Novo, nesse ponto, procedeu bem, e estava na sequência da prosperidade do país.
ENTREVISTADOR – Como a guerra se abateu sobre o
Estado Novo?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – A guerra trouxe o
primeiro impasse, porque do ponto de vista do comércio externo, o Brasil tinha
estabelecido com a Alemanha hitlerista uma troca comercial de alto vulto. A
base do algodão. Porque a crise de 1929, no Brasil, foi particularmente uma
crise do comércio exterior, da economia de exportação, que era basicamente o
café. Ora, o café entra em crise, e essa economia de exportação entra em crise.
O café é substituído pelo algodão, é uma dessas passagens interessantes da economia
brasileira, é que toda a infraestrutura cafeeira, ferrovias, rodovias, meios de
transportes, terras, força de trabalho, que serviam ao café, passam a servir ao
algodão, e a produção brasileira de algodão cresce consideravelmente. Há
momentos em que o valor da exportação algodoeira é idêntico ao valor da
exportação cafeeira, que tinha, até então, sido absolutamente dominante. Mas, o
café permitia relações muito amigáveis com os Estados Unidos, grande mercado
consumidor, mas o algodão não. Eles também produziam e exportavam o algodão, e
tinham criado restrições à exportação de algodão para o Japão e para a
Alemanha. Nós entramos nessa brecha, com o algodão brasileiro que cresceu
enormemente na exportação, no comércio exterior, e permitiu ao Brasil, inclusive
outro traço dentro da prosperidade, importar aquilo que não poderia exportar à
base do café, quer dizer, obteve, não divisas, mas o comércio de compensação
com a Alemanha nazista, quer dizer, troca de mercadoria por mercadoria. Então,
nós passamos a comprar na Alemanha grande parte daquilo que necessitávamos,
inclusive para o reaparelhamento industrial, e até armamento. Nós começamos a
receber o armamento da Alemanha. Ora, a guerra interrompe isso, porque bloqueia
o comércio. Então, cria uma situação nova. Nós temos que voltar a gravitar em
torno dos Estados Unidos. Então, os pruridos de emancipação em relação à
dominação americana desaparecem. E, tendo o regime aqui copiado o regime
alemão, o regime italiano, cria-se uma antinomia. O regime aqui era semelhante
ao de lá, mas ao mesmo tempo o Brasil não podia deixar de ser aliado dos
Estados Unidos. Isso é um processo, que começa em 1939 quando se deflagra a
guerra, e vai se agravar até o momento em que os Estados Unidos entram na
guerra. Aí, então, o Brasil é francamente dependente dos americanos e
restabelece a dominação americana sobre a economia brasileira, e sobre o
comércio exterior. Aí se cria para o Estado Novo uma crise, ele começa a
demonstrar, não só por condições internas, dificuldades na sua produção
industrial, dificuldades genéricas aqui, inclusive reivindicações operárias.
Começa a se deteriorar o regime. Deteriora-se e é permitido combater o Estado
Novo porque se combatia o regime nazista e o regime fascista. Então, a imprensa
combatia muito o nazismo e o fascismo para disfarçar o combate ao governo
brasileiro, ao regime brasileiro. Essa contradição vai culminar com o envio da
Força Expedicionária Brasileira para combater na Itália. Evidentemente, isto
assinala o princípio do fim do Estado Novo. Ele se deteriorou a um ponto tal,
que o fim se aproxima. Criar a passagem para um regime dito democrático, ou de
restabelecimento de condições normais, será o problema do final do Estado Novo
e do Governo Vargas.
CORTE EM 20 MIN E 33 SEG
ENTREVISTADOR – De tudo o que o senhor está
falando, o que me chama a atenção é qual seria a razão para tamanha repressão,
quer dizer, a repressão policial, de prisão, depois toda a tentativa... quer
dizer, se as resistências...
CORTE EM 20 MIN E 55 SEG
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Bom, o fato de não ter
havido resistências parece que não joga com a repressão. Na realidade, a
repressão não foi uma repressão generalizada. Desde que instalado o Estado
Novo, o governo de Vargas tratou de reduzir os possíveis resistentes, ou dissidentes,
à insignificância, à impossibilidade de exercer qualquer ação contra o regime.
Os dois governadores, o da Bahia e o de Pernambuco, que não concordaram são
substituídos. O Ministro Odilon Braga, que foi o único elemento do Ministério
que não concordou, foi substituído. O governador do Rio Grande do Sul
bandeou-se para o Uruguai. Era o grande obstáculo ao regime, por condições
locais, não por condições políticas. E aqueles elementos mais notórios por
condições ideológicas foram presos, perseguidos, tirados de qualquer
possibilidade de resistência, e alguns foram torturados. A repressão se
exerceu, se centralizou nesses elementos que eram os comunistas, a base do
anticomunismo. Não foi uma repressão generalizada, como em 64. Em 64 eles
expurgaram de todas as áreas, todos aqueles que poderiam se contrapor ao regime
instalado, da ditadura instalada. Não foi o caso em 37, inclusive houve
consenso. O golpe de 37 teve um apoio político generalizado, ele contou com uma
base política ampla. Através do anticomunismo, através do medo da agitação.
Então, a repressão foi proporcional às resistências, resistências pequenas.
Repressão centralizada apenas em determinados elementos, particularmente na
área comunista. O Partido Comunista, que era pequeno, já esfacelado em 35,
praticamente não existia. Estava sem organização. Então, pegar uma meia dúzia
que eram ditos como comunistas. Mas, numericamente, os atingidos foram em
número reduzido.
ENTREVISTADOR – Como é que você viu isso tudo na
época?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Bom, eu não tinha muita
coisa na cabeça, mas, evidentemente, eu era refratário ao Estado Novo. O meu
chefe era refratário ao Estado Novo. Mas, nós saímos. Fomos chutados para o
Mato Grosso. Lá permanecemos por, mais ou menos, um ano. Mas, eu não tinha uma
ideologia formada na minha cabeça. Eu não era o homem que sou hoje. Eu não
nasci o que sou hoje. Fui me formando pouco a pouco. Então, eu também não me
contrapunha ao Estado Novo, de nenhuma maneira. Eu não tinha essa aversão ao
Estado Novo, que tive pelo regime de 64. Em 64 eu era outra pessoa, tinha
ideias na cabeça, sabia que isso ia levar o país a desgraça. No Estado Novo eu
era indiferente. Estava entregue aos meus afazeres profissionais. Eu gozava os
fracassos do Estado Novo. O Aporelly, que era um humorista da época, disse: “O
Estado Novo é o Estado a que chegamos”, que era um Estado terrível no fim, em
39. A mim não me tocava isso de perto. Eu estava por fora, como se diz.
ENTREVISTADOR – Em relação a isso, aprofundando
esse aspecto da vivência pessoal, como foi dentro dessa formação, a descoberta
desses aspectos, das questões ideológicas, a formação como historiador,
inclusive como testemunha e estudioso desse processo?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Isso é uma história
longa. A história individual é sempre uma história complicada, que atravessa
muitas etapas, e acompanha a vida do país, e as etapas que o país vai
atravessando. Então, a gente aprende por experiência. Aprende nos livros, e
aprende na vida prática. O Gorki dizia: “...é mais fácil estudar na vida, do
que estudar nos livros”. A vida ensina mais. Então, eu fui vendo que aquilo era
uma coisa terrível. O nazismo, o fascismo, usavam processos repugnantes,
inclusive as violências. Eu era infenso a isso, como intelectual, eu exercia
atividades intelectuais nesse tempo, escrevia em jornais, comecei a publicar
livros em 1938, meu primeiro livro é de 1938. Inclusive meu primeiro livro é a
História da Literatura Brasileira – seus fundamentos materialistas, e o editor
botou a mão na cabeça e disse: “Materialista não pode.”, eu disse: “Então bota
econômico”. Então, saiu “seus fundamentos econômicos”, o que não era uma
verdade, reduzia a interpretação a um economicismo que era um falsear, mas foi
um artifício. Quer dizer, eu já tinha uma noção muito geral das coisas. De
qualquer forma eu não combatia o Estado Novo, se é isso que se coloca em
questão, não combatia, de maneira nenhuma. Não me chocou. Depois, no decorrer
das coisas, pelos fatos reais ocorridos, pelo que ocorreu no Exército, porque o
Dutra tornou-se um régulo. Só se fazia o que ele queria. Só se promoviam os
seus amigos. Seus amigos tinham tudo. Os que não eram seus amigos não tinham
nada. Eu não queria nada, mas queria que me deixasse sossegado. Mas, aquilo me
revoltava porque eu via outros chefes militares perseguidos e injustiçados,
passados para trás. Foi uma coisa terrível. O Exército sofreu muito com o
Estado Novo. Como as Forças Armadas, estão entre as grandes vítimas do regime
instaurado em 64. Elas são apresentadas geralmente como autoras,
corresponsáveis, e são, mas também são grandes vítimas, inclusive pelo seu
desprestígio perante o povo brasileiro. E isso é de recuperação muito difícil.
E os militares sabem disso.
ENTREVISTADORA – Quando começa a se fortalecer as
forças de oposição civis ao Estado Novo, começam a aparecer um Chateaubriand,
com o Diário dos Associados, a rádio, o Estado de São Paulo também pautam
força, começa na imprensa um...
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Evidentemente, quando o
Estado Novo começa a se deteriorar, aí por causas externas, mas também por
causas internas, começam a surgir forças que o combatem, que preparam a sua
queda...
ENTREVISTADORA – A Faculdade de Direito de São
Paulo...
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – A Faculdade de Direito
de São Paulo. O jornal do Estado de São Paulo já estava ocupado, mas enquanto
não foi ocupado, foi um foco de conspiração. Havia no Rio um jornal chamado
Diário de Notícias, do Orlando Dantas, que tinha uma posição, pode se dizer
decente, quer dizer, não fazia oposição, porque não podia, mas também não
compactuava, não fazia elogios. O Estado Novo criou um órgão chamado
Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP, que distribuía
matérias para os jornais, e os jornais todos publicavam aquela matéria. Era a
matéria favorável, das realizações do Estado Novo. Aliás, esse regime (de 64)
fez isso com a imprensa, com o rádio, e com a televisão, que foi muito pior.
Essa propaganda toda dava a ideia de um ambiente sem resistências. Na proporção
em que há aquela antinomia entre um regime que é fascista e nazista quando o
fascismo e o nazismo estão sendo combatidos pelas forças democráticas no mundo,
começa a surgir a resistência. Surge o célebre manifesto dos mineiros, assinado
por Magalhães Pinto, o Afonso Arenas, e os políticos mineiros mais destacados.
Depois começa a surgir resistência nos próprios jornais, mas muito tímidas. O
Chateaubriand não foi um resistente ao Estado Novo. Ele foi um aproveitador do
Estado Novo durante quase todo o tempo. E havia intelectuais que apoiavam o Estado
Novo. Getúlio era um homem que tratava muito bem dos intelectuais. Tinha
pruridos intelectuais. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Só teve
contra um voto. Do Afrânio Peixoto, que não era grande coisa como escritor, mas
teve esse gesto. O resto tudo votou nele. Então, ele realmente não encontrou
resistência. Na fase final começou a encontrar resistência. Mas, quem o depôs?
Foi a Força Armada. Foi uma conspiração militar, e foram os militares,
inclusive aqueles que o haviam levado ao poder, que o depuseram em 45. Por quê?
Porque ele achava que se devia abrir perspectivas para um processo de
redemocratização muito amplo, e as forças conservadoras queriam a rédea dessa
mudança, como agora querem. Quer dizer, querem a transição para um outro regime,
mas conservando o comando dele. Esse processo é sempre difícil. O Getúlio
tentou ampliar, porque ele via grandes perspectivas no mundo novo, onde
inclusive a União Soviética emergia como uma grande potência. Era um mundo que
não podia ser igual ao mundo anterior, era um mundo de características novas.
Mas, as forças reacionárias é que conduziram aqui o processo de desmontagem do
Estado Novo. Conduziram o processo de destruição do Estado Novo, à medida das
suas necessidades, daquilo que desejavam. Montaram um regime de acordo com a
sua fisionomia, de acordo com aquilo que era do seu desejo, e dos seus
interesses. E elegeram Dutra, o condestável do Estado Novo.
ENTREVISTADOR – Quem era Getúlio Vargas?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Um homem de extraordinária
capacidade política, de grande inteligência, de grande habilidade no trato dos
homens. Capaz de adaptar-se às situações. Capaz de ter uma visão política do
processo. E sempre inclinado a seguir a ordem natural do processo político, a
não se contrapor ao processo político, mesmo quando a reação era mais violenta,
fora do quadro do Estado Novo, depois, no governo dele de 50, um ditador que
depois de apeado do poder por um golpe militar, volta ao poder por um ato
eleitoral, era uma coisa espantosa. Porque tinha prestígio. Ele uma vez, como
encontrou grandes resistências no seu governo dito democrático, um governo
normal, ele reuniu no apartamento de um amigo os grandes representantes das
áreas de resistência a eles, políticos, empresários, etc., conversou com eles
mostrando que a política que ele estava seguindo era necessária para a
manutenção dos interesses da burguesia. Eles não aceitaram, então, no
automóvel, ele disse para o ajudante de ordem dele, que depois contou a um
amigo, que depois me contou, “Eu quero salvá-los e eles não querem ser salvos”.
Então, era isso. Ele foi o grande condutor do processo de desenvolvimento
capitalista do país, da ascensão da burguesia. Foi o grande líder que a
burguesia produziu, dificilmente produzirá outro igual. Capaz de tudo,
inclusive de mandar a mulher do Prestes para um campo de concentração, capaz de
tolerar a repressão, e depois capaz de abrir amplamente, de não discriminar.
Então, capaz de seguir a ordem natural do processo político, que é a habilidade
que o político deve ter. Não pode se contrapor.
ENTREVISTADOR – Qual era a meta dele?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – O poder.
ENTREVISTADORA – O papel do Agamenon Magalhães como
articulador do golpe, como é que o senhor vê?
SR. NELSON WERNECK SODRÉ – Um grande articulador.
Um hábil político. Um homem importante nessas jogadas todas, inclusive autor,
já em 45, no ramo descendente do Estado Novo, o Agamenon propôs a chamada lei
contra os monopólios. Que o Chateaubriand apelidou de “lei malaia”, porque ele
chamava o Agamenon de “Malaio”, porque o Agamenon tinha uma fisionomia mongol.
Essa “lei malaia” que não chegou a ser apresentada, não passou de projeto, ela
estabelecia restrições ao agrupamento, à monopolização econômica. Evidentemente,
as forças reacionárias se contrapunham violentamente a isso. Dessas iniciativas
do Getúlio para uma nova etapa na vida brasileira que ele não conseguiu
realizar.
FIM DA FALA DO ENTREVISTADO EM 34 MIN E 34 SEG
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FONTE DA IMAGEM: FÔLDER DO
DOCUMENTÁRIO ‘LEMBRAI-VOS DE 37” - Diretor: Wilson Paraná -
Roteiro: Profs. Maria Antonieta Leopoldi e Eduardo Gomes
UFF – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
IACS – INSTITUTO DE ARTE &
COMUNICAÇÃO SOCIAL
NAV – NÚCLEO AUDIOVISUAL (1986-1987)
PARA
VER NO FACEBOOK:
https://www.facebook.com/centrodeestudos.brasileiros/posts/4059579984122268
[1]
Drauzio Gonzaga foi professor de Filosofia. Era graduado em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1972) e doutorado em Filosofia
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995). Teve experiência na área de
Filosofia, com ênfase em filosofia grega, atuando principalmente nos seguintes
temas: política e filosofia, Ele lecionou na UERJ, na PUC-Rio e na Facha, mas
já estava aposentado.
[2]O
percurso acadêmico de Michel Misse começa como bacharel em Ciências Sociais
pelo IFCS/UFRJ (1974), Mestre (1979) e Doutor em Sociologia pelo Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ/SBI/UCAM (1999). Ele se
tornou Professor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, onde ingressou como professor em 1978, tendo sido
vice-diretor e diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ
entre 1986 e 1993. Dirigiu o Departamento de Ciências Sociais (1984-86) e, por
duas vezes, o Departamento de Sociologia da UFRJ. Desde 2000, ele integra o
corpo docente do Programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia da
UFRJ, sendo diretor da Editora desta universidade federal, segundo informações
na página da editora: http://www.editora.ufrj.br/autor/28/michel-misse
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