21. A HISTÓRIA HOJE

A HISTÓRIA HOJE

- O ÚLTIMO PRONUNCIAMENTO PÚBLICO DE NELSON W. SODRÉ –

 

HOMENAGEM DO MINISTRO DA DEFESA ALDO REBELO AO GENERAL NELSON WERNECK SODRÉ EM VISITA A ITU (FEVEREIRO DE 2016)


Fico sempre muito contente quando recebo mensagens sobre Nelson Werneck Sodré e novas notícias sobre ele e sobre sua obra, mas recentemente fiquei ainda mais feliz ao receber uma preciosidade: uma entrevista com ele, no segundo semestre de 1998. Como, no final deste ano, ele viajou para Itu e faleceu nesta cidade, no dia 13 de janeiro de 1999, presumo que este foi seu último pronunciamento público, antes de falecer. Esta descoberta ocorreu por acaso, inserida no diálogo com Fernando Garcia de Faria, que começou em 15 de fevereiro de 2021. Ele me enviou um e-mail solicitando, em nome da Editora Anita Garibaldi e da Fundação Maurício Grabois, minha autorização para publicarem as conclusões do livro “Brasil: radiografia de um modelo” (Editora Vozes, 1974, p. 173-181); e “Raízes históricas do nacionalismo brasileiro” (ISEB, 1960) de Nelson Werneck Sodré, no livro “Pensamento Nacional-Desenvolvimentista”, organizado por Nilson Araújo e Rosanita Campos contendo diversos autores, aspectos e abordagens do assunto no século XX.

Neste e-mail, Fernando G. Faria destaca: “Sempre que pudemos, elevamos essa figura do historiador marxista e intelectual militar, como por exemplo em sua entrevista “A história vive!” em nossa revista Princípios nº 50, de agosto-outubro de 1998; ou então nas homenagens de seu centenário em que a senhora participou da mesa no nosso auditório, em junho de 2011.” E conclui que “seria uma grande honra poder contar com seu aceite para que possamos, mais uma vez, honrar o nome do grande Nelson Werneck Sodré nessa publicação.” Agradeci-lhe imediatamente pelo contato e deferências com a obra de meu pai, ressaltando guardar uma excelente lembrança da mesa organizada no auditório deles, por ocasião da homenagem ao centenário do meu pai.

Aproveitei a ocasião para contar-lhe sobre o blogue (blog), Memória Viva de Nelson Werneck Sodré, criado para celebrar os dez anos do centenário dele e convidá-los a dele participar com algum testemunho ou depoimento, nele incluindo a entrevista da revista Princípios e lembranças da mesa organizada em 2011. Esclareci também que, na realidade, a Editora Anita Garibaldi e a Fundação Maurício Grabois não precisam de minha autorização para publicar esses textos de Nelson Werneck Sodré, pois, desde 2011, eu havia colocado toda a obra dele em domínio público, abrindo mão de meus direitos autorais. Pela lei do domínio público, qualquer texto dele pode, portanto, ser publicado sem minha autorização, desde que mencionada sua autoria.

Em 18 fevereiro, Fernando me respondeu dizendo: “A sua resposta nos deixou muito contentes. É uma excelente notícia saber que haverá um blog com materiais do/ sobre o querido Nelson W. Sodré. A data é redonda, 110 anos, mas a todo momento é hora de homenagearmos o grande historiador. Temos muita estima pelo pensamento, pela obra e pela figura de grande rigor, do grande brasileiro que foi. O Brasil carece muito de personagens como ele.” Reconhecendo o valor do meu gesto ao verter em domínio público os escritos do meu pai, ele me conta que “a revista Princípios, que chega na 160º edição e completa 40 anos, tem como uma de suas principais entrevistas aquela que foi feita com veterano intelectual, ali no ano de 1998.” Explica que o acesso a ela pode ser feito pelo endereço eletrônico: 

http://revistaprincipios.com.br/artigos/50/cat/1506/a-hist&oacuteria-vive!-.html

Fernando envia-me fotos da mesa do evento por ocasião da homenagem ao centenário “feita em noite de grande júbilo” e a entrevista comigo realizada pelo jornalista e também historiador, José Carlos Ruy[1], “que tanto estudava a obra do Sodré”. Esta entrevista foi feita logo após o ato solene, podendo ainda ser acompanhada pelo link:

https://www.youtube.com/watch?v=MEWlMkdwN5I

Ele relata, então, a notícia da morte de Ruy, há duas semanas atrás, vítima de um infarto. Menciono em minha resposta, ter ficado triste ao ler esta notícia na imprensa, e Fernando lembra, no e-mail seguinte, termos sido vizinhos. No entanto, foi mais do que isso. Tivemos sim contato em Itu, mas, além disso, foi ele que impulsionou este ato solene em homenagem ao meu pai. Ao saber do centenário, Ruy me procurou para me sondar sobre a possibilidade de meu comparecimento a esta solenidade, e fiquei muito grata a ele por seu empenho nesta merecida homenagem a Nelson Werneck Sodré.

Fernando menciona, em seu e-mail, que, além do Ruy, outra pessoa do grupo deles que poderia dar um grande depoimento sobre a obra de Nelson Werneck Sodré seria Augusto Buonicore[2], que estava igualmente na mesa deste memorável evento, porém ele havia falecido há um ano. Augusto Buonicore escreveu uma resenha por ocasião do lançamento do Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré, organizado por Marcos Silva e publicado pela Editora da UFRJ[3].  Marcos Silva também estava presente na mesa desta solenidade, e seu esforço para organizar o Dicionário é de grande valor. Não concordo com algumas afirmações sobre as concepções de Nelson Werneck Sodré apresentadas por Augusto Buonicore em sua resenha, mas por ter me afastado do caminho marxista de interpretação da História, tenho me mantido fora das discussões teóricas ou ideológicas sobre as concepções de Nelson Werneck Sodré, procurado enfatizar sua contribuição para a compreensão da realidade brasileira e da História do Brasil, assim como sua grandeza humana.

Desse modo, tenho passado ao largo de divergências e divisões políticas, que têm levado a discordâncias, rupturas e separações com muitos de seus relevantes expoentes, como aconteceu com Aldo Rabelo[4], que também fazia parte da mesa desta solenidade do centenário, juntamente com José Carlos Ruy, Augusto Buonicore e Marcos Silva. Em 26 de setembro de 2017, a direção do PCdoB emitiu uma nota respeitosa sobre a desfiliação de Aldo Rebelo do partido. Não estou a par da questão, nem me cabe avaliar essas movimentações políticas.  Cultivo o diálogo, a abertura e o respeito por todos aqueles que se empenham na luta pela justiça social e por melhores condições de vida para o povo brasileiro. O diálogo supõe a respeitosa diferença de posições e pontos de vista, e o blogue dedicado a Nelson Werneck Sodré, um renomado autor marxista, está evidentemente aberto a testemunhos e depoimentos desta corrente do pensamento, embora eu não partilhe as mesmas ideias de seus autores e intérpretes[5].

Foi, aliás, no contexto especial de uma celebração católica na Igreja da Candelária de Itu, que me reencontrei de modo inusitado com o Ministro da Defesa Aldo Rebelo, em sua visita a esta cidade, em fevereiro de 2016! O reencontro começou por ocasião desta missa e culminou com a foto que introduz este meu texto e retrata a singela homenagem por ele prestada no túmulo de meu pai. Como as notícias e fotos de sua visita ao Quartel de Itu datam da manhã de quarta-feira 03/02/2016 e a homenagem ao meu pai aconteceu na tarde deste dia, concluo que nos encontramos um dia antes, possivelmente na missa solene das 10 horas dedicada aos 406 anos de Itu e à Festa de Nossa Senhora da Candelária (02/02/2016), Padroeira da cidade, que não consta de sua programação oficial[6].

Nosso reencontro, na Igreja da Candelária, foi emocionante. A comitiva do Ministro Aldo Rebelo e do Prefeito Antônio Tuízi, estava sentada nas primeiras fileiras à esquerda e eu um pouco atrás à direita, de modo que podia vê-los claramente. Percebi que, na hora da consagração e da comunhão, todo este grupo se levantou e se manteve em pé numa atitude respeitosa[7]. Tocada por esta postura, resolvi cumprimentar Aldo Rebelo na saída da celebração. A comitiva esperou todo o povo sair, e se dirigiu para a porta, onde eu me colocara numa atenciosa distância. Quando o Ministro e o Prefeito se aproximaram, seguidos pela comitiva oficial, eu ousadamente o chamei:

- Ministro!...

Todo grupo parou e me olhou de modo interrogativo, mas logo acrescentei:

- Sou filha de Nelson Werneck Sodré, e quero lhe dar as boas-vindas à nossa cidade.

Imediatamente o Ministro e o Prefeito Tuíze abriram o maior sorriso, e Aldo Rebelo veio em minha direção e me abraçou carinhosamente, dizendo:

- Que alegria em revê-la, Olga!

Integrando o Prefeito em nossa conversa, virou-se para ele e me contou:

- Pedi justamente ao Prefeito Tuíze para visitar o túmulo do seu pai, e amanhã iremos ao cemitério de Itu prestar-lhe minha homenagem.

Depois deste curto diálogo, nós nos separamos alegremente e nunca mais o vi. Todavia, soube que tinha realizado esse ato e recebi fotos desta homenagem. A publicação da Folha Militar de 03/02/2016 (20h17) assim relata o acontecimento: “No início da tarde, o ministro Aldo Rebelo e o prefeito de Itu, Antônio Tuíze, estiveram no cemitério da cidade, onde depositaram flores no túmulo do General Nelson Werneck Sodré. ‘A visita é uma forma de reconhecer e valorizar a sua obra como historiador e como intelectual. Ele foi um militar patriota, defensor do Brasil’, afirmou Aldo.”[8] Na publicação há uma foto de Gilberto Alves/ MDA com o prefeito Tuíze e o Ministro Aldo Rebelo colocando a guirlanda sobre o túmulo de nossa família, onde meu pai foi enterrado. A mesma reportagem e suas fotos estão também no noticiário da Assessoria de Comunicação do Ministério da Defesa[9].

Esta homenagem foi comovente e me tocou por ser um reconhecimento inteiramente gratuito e desinteressado de uma pessoa que, embora ocupando, na época, um dos mais altos cargos do governo federal, não esqueceu de agradecer pelos benefícios intelectuais recebidos de meu pai para sua formação. Além disso, prestando atenção nas datas e acontecimentos em curso no cenário nacional, neste momento do início de 2016, verifica-se que estávamos, então, em pleno processo para o impedimento (impeachment) de Dilma Rousseff, iniciado em dezembro de 2015[10].

Em 12 de maioquatro dias antes da saída de Aldo Rebelo de sua função de Ministro da Defesao Senado autorizou a abertura do processo de impedimento (impeachment) propriamente dito e determinou o afastamento da Presidenta da República Dilma Rousseff, que se consumou no final de agosto de 2016[11]. Não tenho maiores conhecimentos sobre a pessoa e a atuação de Aldo Rebelo, de modo que não posso fazer sobre ele as mesmas afirmações que faço sobre meu pai - que acompanhei na intimidade por longo período -, mas posso afirmar, sem dúvida, que seu gesto foi corajoso e teve uma conotação ainda mais contundente, na situação em que vivíamos.

Ele teve a coragem de valorizar oficialmente Nelson Werneck Sodré e sua obra, no seio do meio militar onde ele se formou e atuou com galhardia, e no qual, após 1964, nunca recebeu um reconhecimento militar oficial pelo seu enorme valor. Além do mais, Aldo Rebelo realizou dignamente este gesto num contexto político e num momento histórico de crise e enfraquecimento das forças e representações políticas que apoiavam o destituído governo ao qual pertencia. Por isso, independentemente de outros aspectos de sua carreira política, de suas convicções ou de sua ideologia, ele tem um lugar especial na memória viva de meu pai, e eu sou a ele carinhosamente reconhecida.

DIVULGO, A SEGUIR, O TEXTO RETIRADO DA VERSÃO DIGITAL DA REVISTA PRINCIPIOS[12]. MUDEI APENAS O TIPO E COR DAS LETRAS PARA FACILITAR A LEITURA. A ENTREVISTA DE NELSON WERNECK SODRÉ FOI GRAVADA E TEM O ESTILO COLOQUIAL

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A História Vive! [13]

Bernardo Joffily[14]

 

Com quase seis décadas de atividades literárias e 56 livros publicados, Nelson Werneck Sodré é, sem dúvida, entre os historiadores marxistas brasileiros aquele que tem a obra mais abrangente não só no tempo. Além de literatura e história, seus temas preferenciais, ele tem livros temáticos, e exaustivos, sobre as classes sociais, os militares, a imprensa, de crítica da ideologia dominante, de geografia etc. Militar cassado pelos generais golpistas de 1964, foi pioneiro no uso do marxismo na análise da sociedade brasileira, professor em academias do exército brasileiro e um dos dirigentes do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), órgão do Ministério da Educação e Cultura que, nos anos 1950 e 1960, dedicou-se ao diagnóstico dos problemas de nosso país, de um ponto de vista nacionalista e democrático. Alguns de seus livros se tornaram clássicos, como História da Literatura Brasileira, Panorama do Segundo Império, Formação Histórica do Brasil, Razões da Independência, Ideologia do Colonialismo, História Militar do Brasil, História da Imprensa do Brasil, e o utilíssimo O que se deve ler para conhecer o Brasil. Chegou a enfrentar as agruras que a ditadura destinava a seus opositores principalmente por ter organizado e dirigido a publicação, no começo dos anos 60, da História Nova do Brasil. Foi um dos pensadores que revolucionou o estudo de nossa história, situando-a no conjunto de conhecimentos que ajudam a compreender a realidade política, social e cultural numa perspectiva das mudanças necessárias para sua modernização autêntica e profunda.

 

Bernardo Joffily, de Princípios, foi ao Rio de Janeiro, ouvi-lo (JCR).

 

O senhor é o decano dos historiadores marxistas brasileiros e, ao mesmo tempo, general da reserva do Exército brasileiro. Como é possível conciliar estas duas facetas de sua atividade intelectual e profissional?

Foi muito difícil enquanto estive na ativa, por diversos motivos, entre os quais a falta de tempo. Mas, como fui também trabalhador noturno e aproveitei os vagares da profissão, que eram poucos, consegui exercer as duas atividades. Em certas fases, a atividade intelectual foi muito prejudicada, sem dúvida.


Quando e como o senhor se tornou marxista?

Tive a sorte de ter, no Colégio Militar do Rio de Janeiro, um professor de História marxista. Ele me deu os primeiros rudimentos do marxismo. Depois, através da leitura, procurei me aprofundar no estudo dos clássicos. Foi uma longa aprendizagem, iniciada na adolescência e continuada pelo resto da vida. Continuo a estudar o marxismo e nunca deixei de estudá-lo.


Sua obra literária e historiográfica cobre um amplo leque de temas – vai da literatura à história das classes no Brasil, à história da formação social brasileira, da imprensa, das Forças Armadas etc. Como foi possível, no decorrer de sua longa carreira de escritor e pesquisador, produzir tantas obras, de valor tão relevante, numa época em que se valoriza muito a especialização?

Fui, e continuo a ser, um trabalhador infatigável. As longas e profundas leituras, iniciadas na infância, me permitiram, com a ajuda de também longas pesquisas, em alguns casos, o levantamento e a narração dos temas a que me propus. Minha base foi o método histórico marxista, sem o qual a minha obra não seria o que é. Sou de uma época em que a formação da cultura tinha base humanista e, portanto, se diferenciava claramente da base em especialização que vem adulterando tanto a cultura, agora. Comecei pela literatura, em 1938, com a História da Literatura Brasileira e, depois, passei à História, em que me aprofundei mais. Na nossa época, no Brasil, e também no mundo "ocidental e cristão", a moda está na especialização. É um dos traços negativos da concepção de cultura peculiar à época em que estamos vivendo.


Como o senhor avalia a situação da história hoje, quando se tornou moda, entre os historiadores, valorizar o quotidiano, o específico, o micro, em detrimento da compreensão do processo histórico, das grandes sínteses, do estudo das leis gerais da história, da história como ciência?

É um dos traços mais singulares e sintomáticos do baixo nível a que a cultura está relegada hoje. Assinala essa temporária e crepuscular fase que vamos vivendo, quando o objetivo é alienar o homem e atrair as atenções para o menor, para o anedótico. É o triunfo da mediocridade erigida em norma. O horror à História, à História como ciência, que é, dá indicação de quanto ela constitui ameaça ao estabelecido. E o estabelecido não perdoa isso, Marx dizia que só há uma ciência, a História. E ele sabia por quê.

 

Como são suas relações com a universidade? Há, em alguns meios, preconceito quanto à sua obra. Como o senhor avalia isso?

Na minha mocidade, quando estudei o marxismo, não havia Faculdades de Filosofia, no Brasil, nem havia Universidade. Não me “formei” em História, portanto. Creio que o julgamento negativo do que escrevi é um traço da Universidade de São Paulo (USP), não das universidades, em algumas das quais dei cursos. É um ponto de vista e assinala, a meu ver, diversidade de concepções sobre a História. O Brasil, sob a Guerra Fria, foi submetido a uma campanha anticomunista intensa e continuada. Essa campanha estava vinculada, profundamente, à necessidade, para o imperialismo (Esta frase parece inacabada).


Como foram as suas relações com os comunistas brasileiros? O Partido Comunista teve, a partir de 1962, uma expressão orgânica dúplice, com duas organizações reivindicando a continuidade histórica a partir do partido fundado em 1922. Hoje, o velho partido deixou de existir, e o PCdoB, visto durante muitos anos como dissidência dele, é a principal força comunista do país. Como o senhor avalia essa história?

O Partido Comunista Brasileiro teve uma história tormentosa e não somente por força da reação, mas por razões endógenas. A duplicidade de partidos comunistas não foi uma peculiaridade nossa, apenas. Mas de qualquer forma foi lamentável. Mas isto é passado e a história já apagou essa chamada duplicidade. O fato é que o velho PCB acabou, em congresso, por transformar-se em uma organização partidária não marxista e não comunista. E o PCdoB vai, a cada dia, se destacando como autêntico representante do marxismo e do comunismo. Só posso cumprimentar o PCdoB por esse papel eminente.

Entrando propriamente na história da formação social brasileira, sua obra deu grande impulso à compreensão marxista de nosso passado. Há quem aponte, em seus livros, a influência direta das teses da Internacional Comunista, que se revelaria na ideia de que
aqui se repetiu o esquema de sucessão dos modos de produção (comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo). Outros, como o historiador Jacob Gorender, pensam que a sucessão de modos de produção ocorreu com uma dinâmica própria, com o capitalismo formando-se a partir da desagregação do escravismo. Como o senhor avalia o estado dessa discussão em nossos dias?

Em primeiro lugar, as teses da Internacional Comunista não tiveram a mínima influência na minha obra. Em meu livro Formação histórica do Brasil, ficou bem claro que a nossa evolução histórica, isto é, a passagem de um modo de produção a outro, diferiu profundamente do esquema rígido mencionado. O que existe, realmente, é uma tabuleta, peculiar aos que não leram aquela obra e nenhuma outra de minha autoria, em particular a relativamente recente, Capitalismo e revolução burguesa no Brasil, em que o assunto é, mais uma vez, definido, segundo os meus pontos de vista. Discordo profundamente da tese de que o capitalismo brasileiro se formou a partir da desagregação do escravismo.


Outra posição sua que muitas vezes é incompreendida diz respeito aos militares e seu papel na sociedade brasileira. O senhor garante que há um setor democrático no Exército Brasileiro. Se pensarmos na atuação de soldados como Floriano Peixoto, Luiz Carlos Prestes ou Henrique Teixeira Lott (só para citar alguns), essa tese ganha consistência. Entretanto, hoje, depois de décadas de ditadura militar, ela se mantém?

Fui implacavelmente malsinado, depois de 1964, por ter escrito que os militares brasileiros, o Exército particularmente tinha uma formação democrática. A esquerda da esquerda (e bota esquerda nisso) me acusou até de ter facilitado o golpe de 1964. O que há, e houve, de verdade nisso? Basta lembrar a nossa história: os militares, no Brasil, sustentaram a escravidão e lutaram para a sua abolição, sustentaram a monarquia e derrubaram-na, sustentaram a República Velha e acabaram com ela, derrubaram governos constituídos, mas também asseguraram o seu funcionamento. O que quer dizer isso? Quer dizer que os militares, ora tiveram posições democráticas, ora tiveram posições antidemocráticas. Na verdade, os militares não são, essencialmente, democratas ou antidemocratas. Os militares, estando o Exército inserido na sociedade brasileira, acompanham as contradições da sociedade brasileira: ora assumem uma posição, ora assumem outra posição de fazer das Forças Armadas do Brasil, como de outros países, um instrumento para os seus propósitos. E conseguiram, sem a menor dúvida. Hoje, é costume o leitor de jornais deparar com referências à ditadura instalada em 1964 como "ditadura militar". Sim, ela foi exercida por militares. Mas foi a ditadura das forças mais reacionárias da sociedade brasileira, a serviço das quais os militares foram colocados. O militar, aqui, é um cidadão desinformado, alienado, distante dos problemas políticos. Movido pelas ordens, pois estão numa organização vertical, em que o domínio é exercido por quem está em cima e opera por gravidade: o que vem de cima é uma ordem e deve ser cumprida. Hoje, mudou a circunstância, hoje o imperialismo, agora disfarçado de neoliberalismo, pretende que os militares não defendam seu país, mas sejam mera milícia para combater o tráfico de tóxicos. A doutrina do imperialismo, hoje, é que os países latino-americanos não precisam de Forças Armadas e que elas devem ser extintas ou destinadas a outros misteres. Os militares sabem disso, perfeitamente. Conheço muitos militares que participaram da chamada "ditadura militar" e, hoje, sabem que foram movidos por uma campanha que os levou a cometer graves erros. Já estão conhecendo a verdadeira face do imperialismo. E conhecem bem o que o neoliberalismo no governo está fazendo para destruir o nosso país. O neoliberalismo verificou, como os seus mandantes, que não precisam de golpes militares para fazer o seu serviço; ele tem a mídia como instrumento fundamental para isso.


Tanto comunistas como militares têm se destacado, ao longo das décadas, por defender a soberania e a independência da Nação brasileira. Em muitos momentos, chegam mesmo a coincidir sua atuação, como na campanha do petróleo, nos anos 1940 e 1950. Como, em sua opinião, a questão nacional se combina com a defesa do socialismo e com o marxismo?

É interessante lembrar que o PCB tinha, em suas fileiras, um número grande de militares. Foi talvez uma de suas deficiências, pois a estria militar, preponderou em alguns episódios, e negativamente. Militares foram os mais ardentes defensores do monopólio estatal do petróleo – a tese foi formulada por um militar, o general Horta Barbosa – como outras teses essencialmente patrióticas. Acontece que, por formação, os militares são mais afins com a questão nacional do que com a questão democrática. Mas chegarão lá, e logo. Para nós, a questão nacional se combina com o socialismo e com o marxismo. Os militares não precisam chegar ao socialismo e ao marxismo para se portarem como patriotas. Tanto quanto se pode prever, eles não chegarão a esse nível. Que, aliás, não é o único a alicerçar a defesa do povo brasileiro. Essa defesa pertence a brasileiros de muitas tendências e formações e posições. Cumpre reuni-los e mobilizá-los.


Outra avaliação polêmica sua diz respeito ao modernismo. O senhor já disse que, se o modernismo tem importância indiscutível, não se pode dizer o mesmo da Semana de Arte Moderna de 1922. Como se fundamenta esta distinção?

Eu vivi a época da Semana, em 1922. Ela surgiu de uma blague de Di Cavalcanti. Foi proeza de alguns intelectuais que giravam em torno do velho PRP, o Perrepê da República Velha, e viveu da propaganda. A importância dela foi pequena, quase nula, salvo para os seus protagonistas. O modernismo, ao contrário, foi algo de renovador e tinha sólidos fundamentos. É interessante lembrar que a obra de Carlos Drummond de Andrade apareceu quase uma década depois e o romance nordestino ainda mais longe. Estes foram, realmente, sinais de uma modernidade que se afirmava, essencialmente, pela valorização do que era popular em nós.


Ainda em relação à literatura, o senhor a encara como uma forma de conhecimento. Além de uma forma de prazer, ela é uma manifestação artística que mostra muito da sociedade. O que é que distingue a arte como forma de conhecimento?

Todas as artes, e a literatura com destaque, são formas de conhecimento. Ela se distingue de outras formas, por muitos motivos, que seria longo enumerar e já foram objeto de muitos autores. Entre eles, Gorki, que esclareceu como a arte literária permitia ao homem conhecer a realidade. Marx lembrou, em mais de uma passagem, que os romances de Balzac são a melhor história da ascensão da burguesia francesa. Muitos de seus personagens, aliás, fizeram aumentar o registro civil, e estão mais vivos do que a maioria das personagens políticas da época, reis, ministros, parlamentares etc.

 

Finalmente, apesar de perder força, a tese de que a história chegou ao fim ainda se mantém em muitos meios. O capitalismo seria a culminação da experiência humana, e nada mais haveria a fazer senão corrigir seus defeitos e criar compensações para aqueles que são, inevitavelmente, prejudicados pelo funcionamento do sistema. Numa situação como a atual, a utopia socialista, o sonho de se alcançar um mundo mais justo, tem que ser abandonado?

Quem inventou essa impostura foi um escriba de certa multinacional norte-americana, e, como convinha aos interessados, ela foi propagada como uma verdade, a verdade dos novos tempos. Não passa de tolice que dispensa comentários. O capitalismo é uma etapa da história humana e não é das mais bonitas, como bem sabemos. Também sabemos de seus defeitos, que seria longo enumerar, mas deles existem no Brasil quadros vivos expressivos, como o dos milhões que estão desempregados, os milhares que dormem embaixo das pontes, os milhares que passam fome, os milhares ou milhões que sofrem enfermidades, apesar do avanço das ciências ligadas à medicina. O capitalismo é um conjunto de mazelas e de torpezas. No Brasil, o neoliberalismo, que é a sua derradeira manifestação, tem mostrado o que é o capitalismo e ainda mais o capitalismo dependente. A utopia socialista, o sonho por um mundo melhor, não morreu. Ela vai ressurgir, com força maior e mais eficaz, das ruínas desse mundo podre que o capitalismo gerou e que está pesteando a humanidade. O seu dia chegará.

 


[1] José Carlos Ruy (1950-2021) paulistano, nascido em 7 de outubro de 1950, foi jornalista desde os anos 1970 e um dos primeiros membros do PCdoB a ser dirigente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Ele faleceu na terça-feira 02 de fevereiro, aos 70 anos, em São Paulo. Era membro da equipe do portal da Tv Vermelho, do conselho curador da Fundação Maurício Grabois e da comissão editorial da revista Princípios, além de ex-editor do jornal Classe Operária.

[2] Augusto Buonicore faleceu, em 11 de março de 2020, aos 59 anos, foi historiador, pesquisador marxista, membro do Comitê Central do PCdoB e membro da diretoria da Fundação Maurício Grabois. Foi autor de vários livros, entre os quais: “Marxismo, História e Revolução Brasileira: Encontros e Desencontros”, “Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas” e “Linhas Vermelhas: Marxismo e os dilemas da Revolução”.

[3] Crítica Marxista, n.28, p.179-182, 2009.

[4] Na história de Aldo Rebelo (nascido em 23 de fevereiro de 1956, em Viçosa, Alagoas) destaco sua militância no movimento de origem católica, a Ação Popular (AP), sua luta contra a ditadura militar e seu ingresso em 1977 no Partido Comunista do Brasil (PCdoB), na época em que este estava ainda na clandestinidade, tendo sido vereador na cidade de São Paulo entre 1989 e 1991, e deputado federal pelo estado de São Paulo por seis mandatos. Ele chegou assim a ser ministro da Secretaria de Coordenação Política e Relações Institucionais, vinculada à Presidência da República (de 23 de janeiro de 2004 a 20 de julho de 200) e presidente da Câmara dos Deputados entre 28 de setembro de 2005 e 31 de janeiro de 2007. Entre 27 de outubro de 2011 e 1º de janeiro de 2015, ele se tornou Ministro de Estado dos Esportes; em seguida Ministro de Ciência e Tecnologia e Inovação (2015); e, finalmente, Ministro da Defesa de outubro de 2015 até 12 de maio de 2016.

[5] Mantenho minhas posições e concepções próprias e uma perspectiva orientada pelos ensinamentos de Jesus Cristo, sem me preocupar que isto possa ser mal interpretado no meio político e intelectual ou até em alguns setores do meio católico.

[6]Na programação oficial do Ministério da Defesa (https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/noticias/ultimas-noticias/aviso-de-pauta-aldo-entrega-unidades-do-minha-casa-minha-vida-em-itu-sp )  consta que o Ministro Aldo Rebelo estaria na cidade de Itu (SP), na quarta-feira 03/02/2016, representando a presidenta Dilma Rousseff na inauguração dos conjuntos habitacionais Alpes I e II. É mencionado igualmente que, antes deste compromisso, o ministro Aldo visitaria, a partir das 8h30, as instalações do Grupo de Artilharia de Campanha Leve (Regimento Deodoro), e que, às 12h20, ele iria ao Cemitério de Itu, para visitar o túmulo do militar e historiador Nelson Werneck Sodré.

[7] Este detalhe é importante para mim, pois não gosto de políticos que comparecem às missas e vão comungar apenas para conseguir o apoio dos católicos. É possível que a formação e participação de Aldo Rebelo na juventude católica o tenham preparado para uma adequada postura neste momento central da celebração. Recentemente, na missa de 25/02/2021, o celebrante, Padre Adriano, lembrou aos participantes que não deveriam permanecer sentados neste momento, mas deveriam ajoelhar-se ou manter-se respeitosamente de pé.

[8] http://folhamilitar.com.br/2016/05/ministro-da-defesa-aldo-rebelo-visita-regimento-deodoro-em-itu/

[9] https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/noticias/ultimas-noticias/regimento-deodoro-em-itu-sp-recebe-visita-do-ministro-da-defesa

[10] Em 2 de dezembro, dois meses antes da visita de Aldo Rebelo a Itu, o deputado Eduardo Cunha já havia aberto o processo pela aceitação do documento apresentado por Hélio Bicudo, Miguel Reale e Janaina Paschoal. Em 7 de março, um mês após sua visita, o Supremo Tribunal Federal confirmou a decisão sobre o rito, contrariando a vontade da oposição.

[11] Em 31 de agosto de 2016, Dilma Rousseff perdeu o cargo de Presidente da República após três meses de tramitação do processo iniciado no Senado.

[12] http://revistaprincipios.com.br/artigos/50/cat/1506/a-hist&oacuteria-vive!-.html.

[13] Bernardo Joffily, História hoje, Revista Princípios, EDIÇÃO 50, AGO/SET/OUT, 1998, PÁGINAS 65, 66, 67, 68, 69.

[14] Bernardo Joffily (Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1950) é um jornalista brasileiro. Foi editor do portal www.vermelho.org.br de 2002 a 2009. É também autor do atlas histórico brasileiro “Isto É Brasil 500 anos” (1998) e da agenda “Brasil outros 500 “(2000). Na juventude participou da resistência à ditadura, quando era vice-presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) em 1968-1970. Filiou-se ao PCdoB em 1973 e foi eleito para o Comitê Central deste partido em 2005. Trabalhou como radialista na Rádio Tirana (1974-1979) e foi chefe de redação do semanário Tribuna da Luta Operária (1979-1987). Em março de 2002 ajudou a fundar o site.org Vermelho 

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FONTE DA IMAGEM: FOTO DO MINISTRO DA DEFESA ALDO REBELO E DO PREFEITO DE ITU, ANTÔNIO TUÍZE – ARQUIVO PESSOAL

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