23. PARA ENTENDER O BRASIL

         

            PARA ENTENDER O BRASIL

- RECONHECIMENTO DE NELSON WERNECK SODRÉ POR NOVOS INTÉRPRETES DO BRASIL -

Recebi recentemente um testemunho de Lincoln Secco em homenagem a Nelson Werneck Sodré, que publico a seguir. Depois de ler com interesse o texto e a carta a ele escrita por meu pai do próprio punho, fui pesquisar mais sobre este novo intérprete do Brasilprofessor, pesquisador e escritor. Temos mantido contato desde 2009, porém eu pouco conhecia sobre ele, apenas sabia que era um renomado historiador da Universidade de São Paulo (USP). Ele ensina História Contemporânea no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tendo já alcançado um alto grau de titulação acadêmica nesta renomada universidade como Professor Livre Docente [1].

Nossos contatos começaram em 2 de abril de 2009, quando eu estava montando a rede para a preparação do centenário de Nelson Werneck Sodré. Já nessa época, nossas relações foram bastante cordiais, e ele demonstrou grande apreço pelo meu pai.  Quando surgiu a perspectiva de trazer o projeto do centenário para o Centro de Pesquisas Museu da República da USP, em Itu, eu o indiquei para participar como historiador e professor da USP. Ele achou muito boa a iniciativa, e mencionou ter umas pequenas cartas do Nelson Werneck Sodré, que considerava ser um grande e respeitado historiador, precisando ser mais reconhecido pela universidade. A possibilidade do projeto no Museu da República não se realizou. Acabei sendo envolvida por uma série de outros projetos e eventos em torno do centenário, mas seu nome permaneceu na minha rede de contatos.

Não nos falamos mais diretamente até janeiro de 2021, quando nossas relações mudaram de forma muito interessante tornando-se mais ‘fraternas’. Desde 2020, tenho enviado textos meus sobre a memória viva de Nelson Werneck Sodré e sobre psicologia e espiritualidade por esta rede de contatos. Em 29 de janeiro de 2021, divulguei o texto O fechamento na bolha e o voo do cisne - símbolo da elevação espiritual, e, em 31 de janeiro de 2021, Lincoln Secco me escreveu:

“Prezada Olga Sodré

Parabéns pelo excelente e oportuno artigo.

Um abraço fraterno

Um pouco surpresa dele demonstrar interesse por um texto sobre psicologia e espiritualidade, eu lhe respondi no mesmo dia: “Bom ter notícias suas e saber que apreciou meu texto! Engraçado, há dois dias atrás me lembrei de você, e me perguntei por onde andaria...São essas sintonias interiores.” Também na mesma data, ele logo me escreveu:

“Cara Olga 

A "coincidência" explica-se. Pouco antes de receber seu artigo eu havia começado a ler por acaso a biografia de Talleyrand escrita pelo historiador soviético Tarlé. E vi que as orelhas do livro eram de Nelson Werneck Sodré. E que foi ele quem "introduziu" as obras daquele historiador no Brasil.

Eu acredito em sintonias que estão muito além do poder explicativo da ciência. 

Enfim, estou resistindo a esse tempo de quarentena e neofascismo na certeza de que ao fim de tudo o mal não pode triunfar. 

Seus artigos podem atingir pessoas que os marxistas ignoram e certamente são uma contribuição para o triunfo da justiça social e da democracia. 

Um abraço fraterno e um ano novo de saúde para todos nós. 

Fiquei bastante sensibilizada pelo seu e-mail, mas nada lhe disse então sobre a importância que atribui às suas palavras pelo valor que dou ao diálogo entre os marxistas e as pessoas de diferentes religiões e espiritualidades que lutam pela justiça e democracia. Com meu pai, eu tinha um maravilhoso diálogo nessa direção, porém atualmente vejo ainda muitas resistências e fechamentos dos dois lados a este respeito. Sou olhada com desconfiança por alguns católicos e marxistas que se mantêm fechados em suas bolhas. 

Convidei então Lincoln Secco a participar do blogue dedicado à memória de Nelson Werneck Sodré. Em 1 de fevereiro de 2021, ele me respondeu agradecendo o convite pelo qual se sentia honrado. Prometeu entrar em contato comigo em março, ao voltar para São Paulo: “Estou a postos para a publicação. Nelson Werneck Sodré, embora de uma geração muito anterior à minha, foi um verdadeiro orientador com os seus livros e exemplo de dignidade pessoal e profissional.” Em 16 de março de 2021, ele me enviou seu material para publicação no blogue:

Cara Olga

envio minha colaboração em homenagem a Nelson Werneck Sodré para o seu blog. É um artigo que precisa ser acompanhado da imagem que também envio anexa (uma carta manuscrita de Nelson Werneck Sodré).

Um abraço fraterno e saúde para todos nós.

Respondi imediatamente, cheia de entusiasmo: “Uma maravilha seu texto com o manuscrito em anexo! E lhe agradeci pela sua preciosa contribuição. Ainda no mesmo dia, recebi um resumo de seu interessante percurso, delineando seus traços acadêmicos acompanhados do seu itinerário intelectual, político e pessoal:

Eu cresci na zona leste da cidade de São Paulo. Nasci em 1969. Estudei em escolas públicas e ingressei no PCB em 1984 no movimento Diretas Já. Logo em 1986 aderi à campanha do deputado Florestan Fernandes. Ingressei no PT ao fazer 18 anos em 1987. Participei da campanha de Luiza Erundina em 1988. Militei no núcleo de estudos de O Capital do PT até 2002. Depois me afastei, porém jamais me desfiliei. Foi quando resolvi formar no partido um grupo de leitura de Marx que escrevi a Nelson Werneck Sodré.

Paralelamente, estudei Letras e História na USP, onde fiz meu mestrado e doutorado e me tornei professor de História Contemporânea em 2003.

Assinei o pedido do professor Marcos Silva para que uma das salas de nosso departamento tivesse o nome de Nelson Werneck Sodré. O que foi aprovado. E quem mais me ensinou sobre a obra de Nelson Werneck Sodré foi meu professor da USP Wilson do Nascimento Barbosa, o qual foi aluno de Sodré no ISEB.”

Ao analisar as publicações de Lincoln Secco, descobri ter ele organizado com o historiador Luiz Bernardo Pericás o livro Intérpretes Do Brasil[2], entre os quais colocaram Nelson Werneck Sodré. Ele é também autor de vários outros livros, como, por exemplo, História do PT1978-2010, publicado no ano do centenário de Nelson Werneck Sodré[3].

Seguindo os passos das publicações de Lincoln Secco, cheguei à uma nova abordagem dele sobre o Partido dos Trabalhadores, que tem o instigante título: O que aconteceu com aquele PT? Este texto foi publicado recentemente em 27 de fevereiro de 2021[4]. Nele, ele escreve: “Quando eu escrevi a História do PT em 2010, ainda parecia correto falar em esquerda e direita do partido. Hoje é diferente. Há petistas de direita e de esquerda. Essa é uma mudança resultante da fragilidade organizativa do partido, mas também da sua hegemonia no campo democrático popular.

Após apontar alguns erros comumente atribuídos ao PT, ele ressalta que a Articulação, a corrente hegemônica no partido desde praticamente sua fundação em 1983, ao transformar o PT e a CUT em meras correias de transmissão do Governo federal, fez com que o partido perdesse sua função histórica. Ele é bastante crítico a esta tendência de “...burocratas que iniciaram a carreira política como gestores ou políticos profissionais locais. O PT deles não é o partido dos trabalhadores, mas o dos tesoureiros.

Evidentemente, este contundente tipo de crítica levantou reações de dirigentes do PT, como mostra o texto Comentários sobre o texto do Lincoln Secco[5] , escrito por Valter Pomar, professor e membro do diretório nacional do PT: Quando falo de simplificação, refiro-me a frases como: “É de certa maneira o mesmo partido conciliador que venceu quatro eleições presidenciais no século XXI, cuja direção envelheceu agarrada a cargos e desapegada de ideais e sofreu um golpe de Estado em 2016”. O problema não foi o envelhecimento, nem o apego a cargos ou o desapego a ideias; quer estes problemas existam ou não, o problema principal sempre foi a linha política. E este “detalhe” fica soterrado pela retórica.

Embora vivendo mais reclusa e dedicada às práticas espirituais, leio muitos artigos que me enviam sobre assuntos políticos, entre eles os que envolvem a atuação do PT. Como não tenho uma vivência mais direta ou um conhecimento mais aprofundado sobre este partido, não me sinto em condições de avaliar nem discutir a visão apresentada por Lincoln Secco, mas sua abordagem histórica me parece contribuir para entender de modo mais objetivo e crítico as características, a formação, os conflitos e crises deste partido.

Lembro-me que meu pai tinha muitas reservas sobre a criação do PT. Assisti a conversas dele com um dos fundadores do PT, Apolônio de Carvalho, amigo dele desde o Colégio Militar e ex-combatente da Guerra de Espanha. Ele recebeu a carteira número 1 do PT, e defendia veementemente sua criação. Os dois velhos amigos se apreciavam mutuamente e a conversa entre eles era muito fraterna, apesar de divergirem sobre o assunto. Apolônio era uma pessoa adorável, tinha um sorriso encantador e eu gostava muito dele, porém os argumentos de meu pai me pareciam válidos e se situavam em relação à preocupação dele com as raízes, o fortalecimento e autenticidade das lutas dos próprios trabalhadores. A questão central por ele colocada, já na época da criação do PT, era: seria este um partido realmente dos trabalhadores, construído pelos trabalhadores e para os trabalhadores?

Anos mais tarde, voltei a me reaproximar de Apolônio e de sua esposa Renée, francesa da cidade de Lyon, no sul da França, e que lutara contra a ocupação nazista. O reencontro se deu, porque a nora deles, Angela Arruda, e eu trabalhamos no mesmo laboratório de psicologia social, em Paris, e até hoje somos amigas. Ela me envia frequentemente textos políticos do marido, René de Carvalho, que foi meu colega no movimento estudantil dos anos sessenta e escreve sobre a atualidade política brasileira, com reflexões que abordam muitas vezes o PT. Leio com o maior interesse estes textos, mas não tenho a prática e experiência política deles, e me sinto distante das atividades partidárias. Temos uma perspectiva comum de luta pela justiça social e por melhores condições de vida para o povo brasileiro, mas minha leitura dos acontecimentos é sempre feita à luz dos ensinamentos de Cristo.

Talvez por não estar envolvida pelas questões partidárias, considero que Lincoln Secco tem o grande mérito de apresentar uma visão histórica e crítica do PT fundamental para o momento que atravessamos. Sua abordagem nos permite ultrapassar as visões disseminadas pelo ódio surdo, pelas tentativas de disseminação de notícias falsas e qualquer tipo de fanatismo ou de seguimento cego contra ou a favor do PT. É fundamental para a democracia podermos estabelecer diálogos baseados em projetos, propostas e atitudes respeitosas entre os interlocutores, sem abandonar – é claro! - as próprias convicções e pontos de vista. O equilíbrio entre a reflexão intelectual, o entusiasmo apaixonado, o discernimento ponderado, o respeito humano e a abertura ao diálogo eram características de Nelson Werneck Sodré que encontro também em Lincoln Secco.  Ele me parece levantar não apenas questões polêmicas que precisam ser elucidadas com espírito crítico, mas ele aprofunda também novos ângulos de problemas sociais, quando analisa, por exemplo, a questão do trabalho informal na atualidade, em seu texto O sentido da informalidade, publicado na revista de História da USP[6].

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UMA RECORDAÇÃO DE NELSON WERNECK SODRÉ

Lincoln Secco

 

Na USP quase não se lia a sua obra. Nos textos de antigos professores, raros eram os que o citavam com o respeito que merecia, entre eles Emilia Viotti da Costa e Edgard Carone. Posteriormente uns poucos professores da geração seguinte: Wilson Barbosa, Ilana Blaj, Marcos Silva e Jorge Grespan.

A explicação que encontro para meu contato com Nelson Werneck Sodré é a militância. Se a memória não me falha encontrei o endereço dele no suplemento D.O. Leitura e o convidei para colaborar com uma revista que, incauto, eu desejava editar. A revista não aconteceu, mas em nossa breve correspondência ele me animou e reforçou minhas convicções. Em 22 de junho de 1992 ele me escreveu que não estranhava o fracasso na publicação da revista porque “a reação sabe o que faz quando cria obstáculos à difusão da cultura” e, encorajando-me a ler Marx, afirmou que “sem ele não há ciência, particularmente História”. Sua generosidade intelectual comigo foi marcante em minha trajetória. Poucos anos depois, associado a um grupo maior, sob a liderança intelectual de Ronald Rocha, fundamos a revista Práxis em Belo Horizonte.


Mas Nelson Werneck Sodré permaneceu para mim uma espécie de resistente. Sem concessão a qualquer modismo universitário, escrevia sobre desenvolvimento, nação, Estado, soberania (termos que caíam em desuso em favor de “globalização”).

Sodré tinha a capacidade de demonstrar os mais difíceis problemas teóricos de forma compreensível, erro imperdoável para muitos de seus adversários acadêmicos. Suas sentenças eram quase imperativas, como um professor ditando aos alunos. Em meio a uma vasta discussão sobre o conceito de dependência que se obstinava em eludir sua contribuição, ele simplesmente descartava o jogo de vaidades e explicava de forma cristalina: Qual é o traço essencial de uma economia colonial? E respondia: o fato de que a acumulação de capital é realizada no exterior. Qual a característica da economia dependente? A de que a acumulação se processa também no interior. O que há de continuidade entre as duas? A agricultura de exportação e o fluxo da acumulação para o exterior.

Tudo simples e didático. Evidentemente, ele enriquecia a análise em seguida. Ao contrário do açúcar, o Brasil dominava a comercialização do café e não apenas a produção. A acumulação interna (que existia na colônia em formas mínimas) se expande e gera um mercado interno, sendo este uma das condições para o país se constituir em nação, ao lado do território e população.

Eram aulas de História que os livros e artigos de Sodré continuaram a nos oferecer. Lentamente, o próprio muro que o separava da universidade foi demolido e ele se estabeleceu como um clássico do pensamento brasileiro.

 

FONTE DA PRIMEIRA IMAGEM:

https://www.livrariadopsicologo.com.br/livro-interpretes-do-brasil-classicos-rebeldes-e-renegados-9788575593592,SE6346.html

FONTE DA SEGUNDA IMAGEM:

Carta de Nelson Werneck Sodré – Acervo Lincoln Secco

PARA VER NO FACEBOOK:

https://www.facebook.com/centrodeestudos.brasileiros/posts/3841841225896146




[1] A livre-docência atesta uma qualidade superior no ensino e na pesquisa.

[2] O livro traça um amplo panorama do pensamento crítico político-social brasileiro dos séculos XX e XXI.

[3]O livro foi editado pela primeira vez em 2011, e na resenha editorial da segunda edição se explica não existir ainda um livro sobre a história do PT, nem mesmo uma versão oficial feita pelo próprio partido. Trata-se, portanto de uma difícil tarefa para o historiador de manter uma posição de equilíbrio, sem exaltá-lo ou atacá-lo gratuitamente, procurando oferecer uma visão de conjunto da trajetória deste partido A resenha ressalta que o autor mostra como o PT “ passou de um ator social radical a um integrante da ordem política estabelecida, cresceu eleitoralmente, perdeu seu ímpeto militante e se tornou uma máquina de governo, atravessando escândalos de corrupção, perseguições de seus adversários e chegando a uma surpreendente hegemonia política no Brasil”.

 


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