30. CONSTRUÇÃO DO EDIFICIO INTELECTUAL DE NELSON WERNECK SODRÉ

 

CONSTRUÇÃO DO EDIFICIO INTELECTUAL DE NELSON WERNECK SODRÉ




Não mais existe a situação em que floresceram as propostas de Nelson Werneck Sodré para a transformação do Brasil nem tampouco o processo em curso naquela época de aprofundamentos das reflexões a este respeito pelas leituras e discussões culturais e políticas. Elas ocorriam em diferentes formas de espaço público e ensejavam uma intensa participação social. Podemos ficar olhando para trás, lamentando a interrupção desse processo e a perda desses espaços, modos de reflexão e de ação social. Foi, sem sombra de dúvida, uma perda colossal!

Escuto atualmente pessoas que viveram nessa época se queixando da superficialidade, animosidade e falta de civilidade atual. Reconheço e observo essas modificações, mas o fato é que os tempos mudaram e também as formas de relação e de troca de ideias. Por isso, sem abandonar o meu enfoque, levo em consideração as mudanças em andamento para avançar com os pés no chão da nova realidade. Venho escrevendo e publicando em diferentes espaços em rede, e tenho descoberto interessantes possibilidades de utilizar os recursos desses meios de comunicação para tornar viva a memória das imprescindíveis reflexões e interpretações de Nelson Werneck Sodré sobre a História do Brasil.

Nas redes sociais, fui encontrando gradativamente uma ampliação da acolhida e interesse pelo resgate de sua memória. Embora minha proposta seja diversa daquela dominante nessas redes, aos poucos, informações vão sendo transmitidas; relações, laços e reconhecimentos vão sendo tecidos. Já escrevi muito para revistas especializadas, livros e outros meios de comunicação intelectual, porém eles se destinam a círculos mais fechados. Meu desafio agora é justamente o de abrir caminho e penetrar nos novos espaços virtuais que não se dirigem a um público especializado, procurando transmitir às pessoas interessadas alguns elementos de reflexão para o difícil momento histórico que estamos atravessando.

Fico feliz em verificar que novas teses e livros sobre Nelson Werneck Sodré estão sendo escritos e que pesquisadores sociais voltaram a se referir às suas ideias. O espaço universitário desempenha um importante papel na aquisição do conhecimento e avanço da ciência. Assim sendo, os estudos e pesquisas acadêmicas sobre a obra dele nas universidades têm o enorme mérito de mantê-la viva nesse valioso espaço de formação científica e difusão do conhecimento. Elas têm aberto as portas para o reconhecimento do valor científico de seu trabalho, muitas vezes em difíceis contextos de negação e incompreensão de sua contribuição.

Ao estudar um autor que enfrentou um grande combate intelectual fora do contexto universitário, como Nelson Werneck Sodré, é preciso, no entanto, se perguntar qual era o propósito e os objetivos de suas pesquisas, atividades e publicações. O propósito de cada pessoa está relacionado às suas aspirações mais profundas, à sua identidade, crenças e valores. O propósito norteia os atos, orienta a trajetória existencial e estabelece os objetivos do que se pretende realizar na vida e o legado que se quer deixar para o mundo.

Entender o propósito de Nelson Werneck Sodré e do que ele fazia é fundamental para compreendermos seu esforço intelectual e relacionarmos sua obra com seus objetivos, seu empenho pessoal, suas propostas de trabalho e sua incansável luta científica, cultural e política.  Ainda que ele almejasse o reconhecimento daquilo que produzia e se propusesse a fazer ciência histórica e social, as diretrizes de seu trabalho não estavam direcionadas para a conquista de uma carreira nem para atingir o sucesso literário, social ou acadêmico. Então, qual era o propósito e os objetivos de seu combate e de sua produção intelectual?

Como a pesquisa e interpretação da realidade social de Nelson Werneck Sodré se baseiam no marxismo e foram construídas a partir dos fundamentos do materialismo histórico, há uma tendência de identificar essa base ou fundamentação com o propósito e sentido de seu trabalho. Esta concepção e seu método orientaram e fundamentaram sua elaboração intelectual. Sua escolha desta abordagem decorreu da avaliação de que este era o melhor caminho para a realização do propósito e dos objetivos de seu trabalho. Assim sendo, as duas dimensões da construção de sua obra (o propósito e o fundamento) se articularam de modo admirável, se complementaram e se interpenetraram, possibilitando sua edificação.

A distinção entre essas duas facetas é, contudo, importante para se entender o sentido da obra e das atividades intelectuais de Nelson Werneck Sodré. Para isto, é preciso descobrir o que o direcionava, o que dava ânimo ao seu combate cultural e forças para enfrentar e superar os enormes obstáculos encontrados. É oportuno relembrar que sendo muito bem dotado e preparado, o início de sua carreira militar foi brilhante, tendo ele sido ajudante de ordens do Ministro da Guerra[1]. Todavia, por causa de suas ideias e propostas, ele não pode ascender nessa carreira a não ser por antiguidade. Ele foi afastado para regiões distantes e postos sem maior relevância e acabou indo prematuramente para a reserva. Perdeu seu renomado espaço de ensino e pesquisa (o ISEB), seus direitos políticos, e foi preso. Sua intensa atividade jornalística, sua contribuição para a crítica literária, suas atividades intelectuais foram cerceadas, sendo seus excelentes livros apreendidos, mal interpretados e até depreciados.

Apesar de tudo isso, ele se mantinha firme em seu propósito. Li um dos inquéritos abertos no Ministério da Educação por causa de sua atividade como professor e escritor, e achei interessante a observação do militar que o inquiria. Ele destacou que Nelson Werneck Sodré tinha o que ele chamou de ‘ideia fixa’. Na verdade, esse oficial captou a firmeza de seu propósito de vida e a razão pela qual ele abriu mão de todo o resto, inclusive de muitas possibilidades em atividades que o empolgavam como jornalista, historiador, escritor e professor.

Seu propósito deveria ter para ele um grande valor e um significado muito superior a todas essas perdas. Assim sendo, a compreensão desse aspecto não pode ser descartada do estudo de sua obra. O sentido de suas atividades, de suas lutas e de sua produção intelectual se enraíza e se justifica por um propósito central mais elevado e precioso, ao qual sua obra está relacionada. Para mais clara compreensão da questão, vou ilustrá-la pela metáfora da construção de um edifício.

Nas antigas construções, a pedra fundamental a partir da qual eram definidas as colocações das outras pedras, alinhando toda a construção, era chamada de pedra angular [2]. Ela era a primeira a ser assentada e dava firmeza para colocação e elevação das demais pedras. Estudando as construções das casas e prédios e a aplicação desta metáfora na Bíblia, podemos perceber que a pedra angular é diversa da pedra de base ou fundamento da construção. As duas têm posições e funções distintas. Ao se construir um arco, por exemplo, a pedra angular é colocada no alto. Ela dá sustentação à arcada, sendo distinta do fundamento ou pedra de base sobre a qual a construção se eleva.

No Antigo Testamento, há referência à pedra angular na profecia de Isaías, quando ele anuncia o propósito de Deus para a humanidade. Nessa passagem do relato bíblico, o propósito divino se contrapõe ao daqueles que colocam sua segurança num pacto com a morte, com a mentira e o engano. Deus promete um reino alicerçado em uma pedra que arrasará essa falsa segurança. Ela é colocada como prumo da justiça: “...uma pedra provada, angular, preciosa, de alicerce”. (Isaías 28,16). No Novo Testamento, Jesus é reconhecido como esta pedra angular que sustenta o edifício espiritual, enquanto que os apóstolos e profetas compõem a pedra de base sobre a qual se edifica a construção da comunidade religiosa[3].

pedra angular constitui, portanto, o elemento essencial de uma obra, sendo distinta da base que dá fundamento à edificação. Em sentido figurado, eu utilizo esta metáfora para ilustrar a construção intelectual de Nelson Werneck Sodré.  A partir da pedra angular dessa construção é que foram sendo definidas suas colocações e seus conceitos (as outras pedras do edifício intelectual). Foi sua pedra angular que deu sentido à escolha do fundamento ou base (a concepção e método) de sua construção intelectual. Em outras palavras, a pedra angular e a pedra de base foram estruturando seu pensamento, seus estudos, pesquisas e escritos, dando forma e direcionamento à sua obra.

Qual é, então, o propósito central de Nelson Werneck Sodré, sua pedra angular, a partir da qual ele escolheu a base de sustentação ou fundamento de sua construção (o marxismo); e foi direcionando, elevando e aprumando seu edifício intelectual?

Uma chave importante para a compreensão de seu propósito e dos objetivos de suas atividades é o valor que ele dava à transformação da sociedade e ao conhecimento científico sobre esta questão. Não há uma oposição entre seu visceral idealismo e sua postura científica para o conhecimento objetivo da realidade social. Ambos integram seu propósito. Como intelectual, ele foi tocado pelo problema social e levado a fazer pesquisas científicas para compreendê-lo e solucioná-lo. Sendo materialista e humanista, ele colocava nas mãos humanas a realização social de um projeto conjunto da humanidade. Mas qual o problema primordial que o levou a essa indagação e impulsionou sua reflexão a este respeito?

Nelson Werneck Sodré contou-me diversas vezes que, ainda no início de sua adolescência, quando estudava no Colégio Militar, tomou consciência das injustiças sociais. Seu olhar foi atraído para o rosto cansado dos trabalhadores que encontrava em seu caminho para o colégio, quando o dia mal começava. Ao longo de sua vida, ele foi aprofundando esse ideal de justiça social e sonhando com um mundo de igualdade, fraternidade e paz.

Ele encontrou no marxismo um caminho de fundamentação deste ideal, uma explicação científica do processo social e um rumo que apontava para a solução do problema da justiça social numa sociedade futura onde este projeto se realizaria. Pode-se chamar esse projeto de sonho ou utopia, mas ele resultou em uma sólida obra de pesquisa e interpretação de nossa História, no enfrentamento de lutas pela nossa cultura, em analises e sínteses rigorosas dos diferentes aspectos de nossa realidade, num enorme esforço para decifrar o enigma social brasileiro.





[1] O Ministério da Guerra centralizava, nessa época, todas as forças militares de terra sob um único comando. Posteriormente, essa denominação foi alterada para Ministério do Exército, e, em 09 de junho de 1999 (alguns meses depois do falecimento de Nelson Werneck Sodré, em 13 de janeiro de 1999), deixou de ser um Ministério, passando a ser chamado Comando do Exército. Este comando está ligado ao Ministério da Defesa, que reúne as três Forças Armadas brasileiras (Aeronáutica, Exército e Marinha).

[2] Ela é denominada angular pois situa-se num ângulo apropriado para dar sustentação, normalmente na junção entre duas paredes ou arcos. Nas construções modernas a pilastra angular se ergue sobre a base, fundação ou terreno da construção, mas é ela que sustenta as paredes e o telhado, mantendo a casa de pé. 

[3] A pedra de base é personificada na figura do discípulo Simão, quando Jesus troca seu nome e o indica como sendo Pedro, isto é pedra: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (Mateus 16, 18). 

 

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