29.EM DEFESA DA CIÊNCIA - CONTRIBUIÇÃO DA METODOLOGIA CIENTÍFICA DE NELSON WERNECK SODRÉ
EM DEFESA DA CIÊNCIA
- CONTRIBUIÇÃO DA
METODOLOGIA CIENTÍFICA DE NELSON WERNECK SODRÉ –
(HOMENAGEM AO DIA DOS PAIS)
A REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO GEOGRÁFICO BRASILEIRO COMEÇA A SER PUBLCADA DESDE 1939
A ciência no Brasil está sofrendo
atualmente grandes ataques governamentais em vários setores, num inacreditável
desmonte de laboratórios de pesquisa e cortes inimagináveis, sobretudo para a
formação de novos pesquisadores. Pontos de vista e argumentos científicos estão
sendo ignorados e solenemente negados de uma maneira sem precedentes[1]. Têm sido adotadas políticas indubitavelmente anti
científicas, enquanto que a pesquisa científica feita principalmente nas
universidades públicas está sendo negligenciada e destruída, provocando sérias
consequências para a formação de pesquisadores, para o desenvolvimento
brasileiro e a justiça social.
Neste contexto, ao nos
aproximarmos do encerramento das jornadas de celebração dos 110 anos de Nelson Werneck Sodré e do final do livro Memória
e Interatividade organizado para marcar uma homenagem a ele nesta
ocasião, é, portanto, oportuno refletirmos sobre a contribuição de sua
metodologia científica, pois ela foi concebida e utilizada num sentido
totalmente inverso ao da atual proposta governamental.
Os que têm acompanhado nossas publicações,
talvez tenham se perguntado por que uma pessoa católica e engajada
espiritualmente - como eu sou - defende com veemência o método materialista
deste historiador, tendo chegado a fazer oficialmente sua justificação no mais
clássico e renomado Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), por
ocasião das comemorações do centenário dele em 2011. E por que voltar agora a
este tema? Qual é a importância e sentido de se escrever a este respeito, no
atual contexto que atravessamos?
Estas são questões fundamentais em
nosso trabalho de resgate e atualização da memória de Nelson Werneck Sodré. O
empenho na defesa do uso do método marxista nas pesquisas e interpretações da
História do Brasil por este autor pode parecer estar em contradição com minha preocupação
em não entrar na discussão teórica dos temas e conceitos marxistas, deixando
estas questões para os especialistas e estudiosos de sua obra. Contudo, tenho
adotado a mesma postura na abordagem dos métodos de pesquisa em minha própria
área de atuação profissional, a psicologia. Faço referências e indicações a
respeito da psicanálise ou da psicologia profunda, porém não me preocupo em
entrar na discussão sobre estes métodos, criticá-los ou contestá-los.
Será que faço isso por desconhecer o
marxismo, a psicanálise ou a psicologia profunda? De modo algum. Estudei,
aprofundei e pratiquei estes métodos, e reconheço a validade e importância
deles, mas prefiro focalizar o que absorvi deles para a compreensão de minha
abordagem atual. O fato de eu ter procurado explorar e avançar em outras
direções não quer dizer que nego o valor destas concepções e de seus métodos.
Não significa tampouco que deixei de reconhecer o valor deles. Para tomar
outras direções mais adaptadas à minha caminhada espiritual e científica, eu
não preciso negar as anteriores contribuições. Preciso apenas me demarcar
delas, apresentando claramente as razões de minhas opções, mas mantendo o
diálogo e respeito com os que escolheram se manter e aprofundar estes métodos e
teorias, como foi o caso de Nelson Werneck Sodré.
Para melhor esclarecer a questão
fundamental da opção e aplicação do método marxista, parece-me importante ilustrá-la
pelo relato de meu percurso pessoal como pesquisadora. Meu pai cuidou
pessoalmente de minha formação marxista, desde o início da minha adolescência.
Além de conversar diariamente comigo sobre a situação brasileira e sua
História, ele e me orientava e discutia comigo sobre a leitura dos principais
clássicos do marxismo. Lembro-me nitidamente que, quando fiz 13 anos, ele me
passou meu primeiro livro sobre o assunto: era um livro de Engels, o grande
amigo e colaborador de Marx, sobre a propriedade privada. Passei a assistir
regularmente seus cursos de História do Brasil, desde sua aula inaugural no
ISEB em 12 de março de 1959, antes de completar 18 anos. Quando ele começou a
organizar o material para escrever seus vários livros sobre o método marxista,
ele me encarregou de fazer as fichas de seus temas por assunto e autor,
anteriormente à publicação dos livros deles a este respeito[2].
Com a base nesta sólida formação,
logo no primeiro ano de meu curso na Escola Brasileira de Administração Pública
da Fundação Getúlio Vargas (RJ), fui contratada por um de meus professores para
ser sua assistente numa pesquisa da Fundação Ford. Começou assim minha carreira
de pesquisadora na área de ciências sociais.
Em 1966, dois anos após a implantação
da ditadura civil-militar, eu tinha um excelente trabalho na Editora Delta, mas
a atmosfera política brasileira era sufocante e eu me sentia muito abalada
pelas prisões e mortes dos que se opuseram ao golpe de 1964. Resolvi, então, ir
estudar na França com uma bolsa de estudos para uma das mais renomadas
instituições francesas, a Escola Nacional de Administração (École Nationale d’
Administration -ENA).
Graças à base intelectual já
adquirida, consegui o primeiro lugar nesta formação. Tal conquista me abriu as
portas para ingressar em outras importantes instituições internacionais de
pesquisa, como a Divisão de Política Científica da UNESCO e o Laboratório de
Psicologia Social da Escola Prática de Altos Estudos (EPHE). O diretor deste
laboratório me indicou para fazer um diploma de estudos aprofundados numa
formação especial para pesquisadores, a EPRASS (Ensino Preparatório para a
Pesquisa Aplicada em Ciências Sociais –divisão de psicologia).
Após terminar este curso, fui por
meus professores indicada para ensinar métodos de pesquisas para os alunos da
pós-graduação na Faculdade de Ciências Humanas Clínicas da Sorbonne (Paris
VII). A partir daí, passei a ensinar métodos de pesquisa tanto na França como
no Brasil, quando para cá retornei por um curto período, no início dos anos
setenta. Relato esses fatos para demonstrar a sólida formação recebida de
Nelson Werneck Sodré, e como ela contribuiu para meu aperfeiçoamento e avanço
na pesquisa científica.
Este meu primeiro retorno ao Brasil
foi curto, pois a atmosfera política estava ainda mais pesada com a implantação
do AI-5, o decreto que deu início ao período mais violento da ditadura militar.
Trabalhando no departamento de pesquisas do Instituto Brasileiro de
Administração Municipal (IBAM), realizei uma pesquisa sobre a fusão do estado
da Guanabara e do estado do Rio de Janeiro. Com base no material desta
pesquisa, consegui uma bolsa de estudos para preparar um doutorado em
sociologia urbana, na Escola Prática de Altos Estudos (EPHE), com um orientador
marxista de grande projeção, naquela época, no meio acadêmico francês.
A preparação desta tese marcará minha ruptura com o marxismo e uma virada
fundamental em minha caminhada científica. Os acontecimentos ocorridos na
elaboração desta tese testemunham o valor que atribuo à proposta marxista de
Nelson Werneck Sodré e meu distanciamento em relação ao tipo de marxismo
defendido por este professor e outros intelectuais desta linha. Embora meu pai
tenha sempre levado em conta as condições da infraestrutura econômica e as
relações de produção no processo histórico brasileiro, suas pesquisas sempre
descreveram em detalhes a ação dos agentes e instituições no cenário nacional.
Assim sendo, estudiosos da situação brasileira, mesmo não sendo marxistas,
podem até hoje acompanhar e entender a dinâmica dos acontecimentos por ele
narrados.
Eu era muito amiga desse orientador
de minha tese e o admiro até hoje, porém ele não admitia meu enfoque na linha
de Nelson Werneck Sodré. Ele queria que eu explicasse a fusão dos dois estados
brasileiros pela infraestrutura e relações de produção nesta região. Ocorreu
assim um impasse; ou eu aceitava seu ponto de vista e esta imposição para poder
passar a tese ou eu teria que desistir dela. Meus colegas me aconselharam a
passar a tese como queria o orientador, e depois seguir minha carreira de
pesquisadora como eu entendia.
Acontece que eu estava num momento
crucial de mudança de vários aspectos de minha vida, em função de descobertas
em minha psicoterapia com base na psicologia profunda. Nestas condições,
emergiu um impulso para não aceitar tal imposição. Sou, em verdade, bastante
avessa às imposições! Assim sendo, decidi mudar radicalmente de rumo,
transferindo meus créditos de doutorado para uma formação que eu já estava
seguindo em filosofia. Abandonei, portanto, a tese em sociologia urbana e
acabei defendendo um doutorado em filosofia. Soube posteriormente que meu
orientador – por ironia do destino! - deixou de ser marxista e foi ensinar em
Berkeley (USA)...
O importante nesta história toda é a
compreensão de que um método de pesquisa tem valor pela possibilidade que ele
oferece de aprofundamento do conhecimento da realidade. A realidade do mundo em
que vivemos é complexa e pode ser vista de vários ângulos. Nestas condições, o
método científico é semelhante a um microscópio, um instrumento com capacidade
de ampliar as imagens desta realidade e nos permitir ver facetas que não
percebemos ao olharmos diretamente os acontecimentos isoladamente a olho nu.
O grande valor de Nelson Werneck
Sodré reside justamente no modo de usar o marxismo como método científico para
nos revelar e descrever dimensões do Brasil, que não percebemos em nosso
cotidiano. O quadro que ele nos apresenta pode ser alegoricamente comparado à
pintura de um grande artista que nos faz ver a realidade de um outro modo.
Desse modo, ele amplia o horizonte dos que o leem independentemente de suas
opções teóricas e metodológicas.
As celebrações do centenário de
Nelson Werneck Sodré desempenharam um papel importante em minha relação com
instituições nas quais ele não tinha sido reconhecido ou que antes o ignoravam,
entre elas o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Eu sabia que
meu pai só tinha sido reconhecido como membro emérito do IHGB em 1998, um ano
antes de seu falecimento, e nunca lá entrou.
Por isso, tendo sido – como acabo de
relatar - professora de métodos de pesquisa no nível de pós-graduação no Brasil
e na França, escolhi de ali fazer a defesa de seu método de pesquisa histórica,
por ocasião de um evento que organizaram para a celebração de seu centenário, e
cujos textos foram publicados na revista do IHGB de 2011. Senti-me muito à
vontade como cientista social ao reconhecer o mérito da original aplicação do
método marxista por Nelson Werneck Sodré, tendo em vista de eu não seguir a
mesma orientação nem estar defendendo minhas próprias ideias.
APRESENTO A SEGUIR NUMA FORMA
REDUZIDA O MEU LONGO TEXTO PUBLICADO NA REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO
GEOGRÁFICO[3] EM RELAÇÃO COM A QUESTÃO DO MÉTODO
CIENTÍFICO[4].
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ORIGINALIDADE DA
METODOLOGIA DE PESQUISA HISTÓRICA DE NELSON WERNECK SODRÉ[5]
- UM MÉTODO
PRECURSOR DE PESQUISA SOCIAL –
Tendo em vista a homenagem prestada
pela Comissão Científica do IHGB ao centenário de Nelson Werneck Sodré,
parece-me importante pôr em relevo a originalidade do seu método de pesquisa
histórica e sua afinidade com a filosofia da história por mim defendida com
base em Paul Ricoeur ao estudar a história, a ação dos protagonistas
históricos, seus testemunhos e suas memórias, tanto no nível macrossocial como
no nível microssocial dos agentes históricos e instituições.
Embora não sendo marxista, quero
destacar, por ocasião dessa homenagem, sua criativa utilização do método
marxista para o conhecimento da realidade social brasileira e de nosso processo
histórico com base em sua teoria sobre o Brasil e em questões por ele
levantadas na atualidade social. O aprofundamento de minha formação e experiência
de pesquisadora social[6] me possibilitou apreciar
ainda mais as principais obras de Nelson Werneck Sodré como excelentes exemplos
de integração da teoria e da prática de pesquisa. Suas obras são marcadas por
um apaixonado empenho no conhecimento e decifração da realidade social
brasileira, por um minucioso levantamento das informações e testemunhos, pelo
estudo das principais fontes e por uma sistemática coleta de dados, ao longo de
vários anos de trabalho incessante.
Estas características se revelam em
seus estudos das mais variadas áreas do conhecimento e se aperfeiçoam ao longo
de seu percurso intelectual, permitindo-lhe delinear um vasto panorama e
síntese histórica do Brasil. Por mais de sessenta anos, Nelson Werneck Sodré se
dedicou diariamente à pesquisa, lendo os mais diversos livros e jornais com
enorme atenção. Ele costumava recortar ou anotar com método e precisão alguns
dos trechos lidos, dobrando-os e guardando os recortes com grande cuidado em
caixas ou fichários sobre os quais colava etiquetas que classificavam esses
recortes por época e assunto.
Pude testemunhar essa forma rigorosa
de pesquisar, durante os vários anos de nossa convivência, observando-o
organizar sistematicamente os temas da atualidade para consultas posteriores,
quando se propunha a escrever sobre os assuntos registrados nesses arquivos ou
quando queria relacionar esse material com outros dados históricos. Deste modo,
o material por ele coletado, em diferentes livros e periódicos, era organizado,
analisado e explicado à luz de sua perspectiva marxista numa visão integrada de
sua práxis e de sua teoria de pesquisa. Ao longo de uma vida dedicada à
pesquisa histórica, ele foi assim reunindo diferentes informações e testemunhos
diversos sobre cada um dos temas estudados, interessando-se sempre pelo que as
pessoas diziam e pensavam a respeito de cada assunto e fazendo um registro
dessas informações para poder posteriormente compará-las e tirar suas próprias
conclusões com base em suas ideias e concepções.
Esse tipo de pesquisa diária do
fenômeno social e de sua representação era feito com grande zelo, constância e
amor pelo conhecimento, o que contribuiu de modo decisivo para fazer dele um
grande pesquisador. Observando a relação apaixonada de Nelson Werneck Sodré com
a pesquisa e a escrita, passei a apreciar, desde pequena, sua dedicação diária
ao cultivo da palavra e do conhecimento. Posteriormente, quando me tornei
pesquisadora, o que aprendi com ele me serviu de base e de referencial para a
prática da pesquisa, tendo passado a valorizar ainda mais seu trabalho
histórico.
A originalidade da metodologia de
pesquisa histórica de Nelson Werneck Sodré foi motivada por um autêntico desejo
de compreender e explicar as transformações do mundo e de poder delas
participar. Tomando seu estudo da História da Imprensa no Brasil[7] como exemplo de seu método de pesquisa, pode-se
melhor entender sua utilização das questões da atualidade e da narração da ação
dos protagonistas e instituições para o estudo histórico. O entrelaçamento
entre o estudo dos textos e arquivos da imprensa e a pesquisa dos fatos
históricos à luz da análise marxista da realidade social brasileira é uma das
características fundamentais de sua abordagem histórica.
Assim sendo, apesar das enormes
inovações nessa área de pesquisa sobre a imprensa, seu livro e suas pesquisas
sobre o assunto continuam insubstituíveis e de grande atualidade pela riqueza
do material reunido, pelas questões levantadas e pelo cuidado e interesse que
dispensou à pesquisa histórica da imprensa, integrando de forma harmoniosa sua
teoria marxista sobre o Brasil às distintas práticas que exerceu como
jornalista, pesquisador, historiador ou escritor. Em seus diferentes livros de
pesquisa da história brasileira, Nelson Werneck Sodré esboçou um imenso e variado
painel da formação da nação brasileira.
Ele foi um precursor da reflexão
sobre a comunicação no Brasil, sendo pioneiro no enfoque e compreensão da
estreita relação entre a formação da nação brasileira e a história da cultura
nacional, deixando um levantamento minucioso e uma profunda e detalhada análise
dessa estreita relação. Ele pôs em relevo o papel da cultura no desenvolvimento
histórico do país, mostrando seu processo de transformação e participando
intensamente dessas transformações. Desse modo, ele tornou-se não apenas um
historiador que soube destacar a cultura e seus protagonistas, mas chegou a uma
concepção pioneira do papel social da cultura e da comunicação e a uma
abordagem inovadora da formação da sociedade de comunicação, na qual hoje vivemos.
Alguns pesquisadores acadêmicos, em
particular os da USP, com a proposta de inovar os métodos da pesquisa social
brasileira, após as mudanças universitárias introduzidas na década de setenta
em nosso país, manifestaram um particular preconceito contra o marxismo e a
obra de Nelson Werneck Sodré e procuraram negar o valor científico de suas
pesquisas históricas [8]. A valorização excessiva dos
estudos quantitativos e das novas técnicas de levantamento e controle de dados
levou muitos pesquisadores a menosprezar o uso dos testemunhos e dos dados
veiculados pela imprensa como uma forma de pesquisa.
Atualmente, contudo, mesmo aqueles
que não se baseiam no estudo do marxismo, como é o meu caso, consideram
inegável o valor dessa teoria para o conhecimento das ciências sociais. Muitos
pesquisadores contemporâneos, em particular os que trabalham com as
representações sociais e as representações históricas, reconhecem o caráter de
fonte primária da imprensa e sua contribuição para diversos tipos de pesquisa.
Esta fonte de pesquisa vem sendo cada vez mais utilizada, em particular no
âmbito da psicologia social e da historiografia.
Parece-me, portanto, importante
ressaltar que foi com base em sua teoria marxista e em seu método de pesquisa
da imprensa que Nelson Werneck Sodré conseguiu reunir um precioso acervo de
informações e testemunhos históricos, expondo as práticas políticas, a ação de
seus agentes, de intelectuais e diferentes instituições brasileiras na
perspectiva de um processo mais amplo da história de nosso país. Sua integração
da teoria e da prática de pesquisa permitiu-lhe revelar a dinâmica interna da
história, passando pela Colônia, o Império, e a fundação da República até
chegar ao Estado Novo, a sociedade industrial e as transformações que lançaram
as bases da sociedade de comunicação em nossos dias.
Para melhor apreciar seu pioneiro
trabalho de pesquisa histórica é fundamental também destacar que, antes mesmo
do desenvolvimento da pesquisa acadêmica e da expansão editorial da área
científica no Brasil, ele conseguiu elaborar e consolidar um método próprio de
pesquisa que lhe permitiu registrar a variada produção cultural brasileira e
suas instituições, focalizando a ação de seus principais intérpretes e
protagonistas históricos. Desse modo, Nelson Werneck Sodré nos legou um
levantamento bastante amplo dos acontecimentos e produções culturais,
reconstituindo de modo rigoroso e amplo um quadro bastante minucioso da
História brasileira até o século XX.
Com grande habilidade no manuseio da
dialética, ele traçou um exaustivo panorama das diversas contradições sociais,
ressaltando as novidades e peculiaridades próprias de nossa história.
Acompanhando a trajetória da vida política, econômica, social e cultural do
país, ele destacou a relação dos atores sociais com o poder, expondo não apenas
a alienação cultural dominante, mas também a combatividade e inovação de muitos
brasileiros. Pode assim nos revelar as raízes do processo de nossa dependência
cultural, ensinando-nos a importância da luta pela liberdade, pela democracia e
pela cultura nacional e popular para se conseguir um país livre e autônomo.
Face à proliferação posterior de
textos que tratam os temas científicos de modo empírico, fragmentado e pontual,
Nelson Werneck Sodré continua sendo de grande atualidade. Ele não só reuniu uma
extensa e detalhada bibliografia de cada época e região do Brasil, fazendo um
exaustivo levantamento de diversas fontes, como também dissecou as entranhas do
poder, pintando um quadro bastante completo e variado da História de nosso país
que se contrapõe ao esfacelamento da atual pesquisa acadêmica na área das
ciências humanas e sociais.
Trabalhando uma metodologia marxista
criativa e rigorosa, ele conseguiu alinhar os fatos ao longo da dinâmica do
processo social, revelando suas contradições. Produziu assim uma reflexão de
grande e profunda abrangência diversa da ótica dos especialistas, legando-nos uma
visão mais ampla e abrangente do processo histórico e da vida social
brasileira. Sua historiografia é a de um historiador e jornalista de ofício que
teve a iniciativa pioneira de estudar e relacionar esses dois campos de
investigação com o zelo de um estudioso que era ao mesmo tempo um profissional
da imprensa e um dos mais ricos e complexos historiadores brasileiros.
Os artigos, teses e publicações
acadêmicas têm revelado uma nova e rica produção especializada, mas ela é, no
entanto, ainda restrita, reduzindo-se frequentemente a um conjunto de análises
parciais que carecem muitas vezes de uma visão teórica mais ampla. Assim sendo,
Nelson Werneck Sodré, por intermédio de seus livros sobre História da
Literatura, História Militar, História da Imprensa ou História da Cultura, pode
continuar contribuindo para as pesquisas atuais, pois permanece como um dos
poucos trabalhos de fôlego de nossa história, abrangendo seus diferentes
aspectos, ao longo de suas diversas etapas e períodos, transmitindo-nos uma reconstituição
crítica do longo processo histórico brasileiro e revelando-nos os momentos
decisivos desse percurso.
Tendo em vista o porte de sua obra, é
inegável o valor insubstituível dela para a compreensão geral da História
brasileira e para uma visão global do processo dessa história como um todo. O
enfoque histórico desenvolvido pelo autor nos permite compreender que as atuais
transformações brasileiras fazem parte da trajetória histórica de nosso país e
de sua integração no quadro das relações capitalistas internacionais por ele
amplamente analisadas. A prática jornalística de Nelson Werneck Sodré e seu
estudo histórico do Brasil foram as duas vigas mestras que favoreceram sua
pesquisa de dados, possibilitando-lhe traçar a trajetória brasileira como nação.
Nelson Werneck Sodré vai estabelecer uma estreita relação entre a atividade
jornalística, a atividade literária, a vida política e cultural do país e a
história.
O estudo histórico e social está,
portanto, presente desde esse começo de sua produção intelectual e de sua
atividade como jornalista, que é marcada, desde seus primórdios na imprensa,
pela valorização das reportagens investigativas e dos artigos de mais fôlego. Nelson
Werneck Sodré termina suas Memórias de um Escritor salientando
que seus recursos culturais do período por ele relatado nessas memórias e
anterior aos anos cinquenta eram insuficientes para que ele continuasse
desenvolvendo sua produção intelectual, na nova fase em que o Brasil estava
entrando, tornando-se necessário ampliar e aprofundar seus conhecimentos
teóricos.
Comenta que isso lhe demandaria
posteriormente anos de estudo sistemático, metódico e progressivo, o que o
levaria a se voltar, no campo das ciências sociais, para a história, e, no
campo das artes, para a literatura. A partir da década de cinquenta, a
industrialização e a urbanização do país estando já em curso, o Brasil se
transforma de modo mais acelerado, ingressa na sociedade moderna, e vai sendo
forjada a nova etapa na atividade intelectual de Nelson Werneck Sodré,
acompanhando o aumento da participação de diferentes forças sociais na cena
política, e a intensificação do debate intelectual e político dos anos
cinquenta e sessenta.
Nessa fase de grande efervescência
intelectual do país, o aumento dos debates e da participação dos intelectuais
como Nelson Werneck Sodré na vida pública, na comunicação social e no processo
de mudança da sociedade contribuem não só para alterar várias ideias, valores e
ide- contribuem não só para alterar várias ideias, valores e ide- contribuem
não só para alterar várias ideias, valores e ideais sociais, mas também para
promover um entrelaçamento entre cultura, comunicação e política, permitindo ao
nosso autor o aprofundamento de sua teoria sobre o Brasil e de sua metodologia
de pesquisa.
Acompanhei direta e intensamente essa
nova fase de Nelson Werneck Sodré, após os anos cinquenta e na qual ocorreu uma
profunda reelaboração de sua metodologia marxista e de suas concepções da
História. Essas mudanças em seu pensamento o levam a aprofundar seus trabalhos
científicos no campo marxista, tendo esses estudos metodológicos sido
transformados em quatro antologias publicadas posteriormente, em 1968: Fundamentos
da Economia Marxista[9], Fundamentos da
Estética Marxista[10], Fundamentos do
Materialismo Histórico[11] e Fundamentos
do Materialismo Dialético[12]. Estas mudanças
teóricas marcam sua entrada numa etapa da maturidade como escritor, pesquisador
e pensador brasileiro...
Nesta segunda fase da produção
intelectual de Nelson Werneck Sodré, seu trabalho de pesquisador se associa ao
seu trabalho de ensino e a uma maior atuação no espaço público, passando ele a
dar mais ênfase à pesquisa histórico-social, ao refinamento de sua metodologia
científica e ao aprofundamento de um projeto para o desenvolvimento da
sociedade brasileira. Intensifica-se sua pesquisa e desenvolve-se sua produção
intelectual na linha histórico-social, para a qual ele traz um olhar novo sobre
o enfoque marxista da história, mesclando o pensamento histórico-social ao
memorialismo.
Nelson Werneck Sodré entra, então,
num período de criatividade, pujança e harmoniosa integração entre sua
metodologia científica, seu combate intelectual e as questões da atualidade
histórica, no qual se torna um historiador de problemáticas levantadas a partir
da análise dos acontecimentos diários e um precursor da reflexão sobre a
comunicação no Brasil. Deste modo, ele não apenas analisa as transformações
sociais desse período, mas passa a ser um intérprete do forte anseio
nacionalista e do desejo de transformações e reformas, que então despontam em
meio a lutas que tentam incorporar os setores populares na vida nacional. Sua
voz e sua pena se engajam nessas lutas, contribuindo para o entrelaçamento da
vida cultural, política, civil e militar do país, num mesmo espaço público de
discussão e elaboração intelectual e para o debate dos temas dessas lutas na
imprensa e em suas pesquisas e publicações.
A partir dos anos cinquenta e cinco,
intensifica-se sua atividade como professor, pesquisador e escritor, ao ser
criado o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), no qual ele se
dedica à produção de vários livros que refletem de perto as questões levantadas
pelos acontecimentos dessa época numa perspectiva histórica, refletindo sobre o
novo período da história cultural brasileira. A abertura democrática por Nelson
Werneck Sodré descrita em vários de seus livros teve um impacto fundamental na
vida cultural brasileira, favorecendo o aparecimento, em 1955, deste instituto,
no qual ele pesquisou, ensinou e aprofundou a compreensão da realidade social
do país, consolidando e expandindo uma produção intelectual enraizada nas
questões levantadas em sua análise das lutas e particularidades brasileiras.
Na última fase de suas pesquisas,
após a implantação da ditadura civil-militar de 1964, Nelson Werneck Sodré
realiza uma síntese teórica e chega a um período de grande aprofundamento e
sistematização em sua abordagem sobre o Brasil. Ele se dedica cada vez mais à
publicação de livros, mas continua participando da atividade jornalística por
meio da qual se empenha nos combates políticos. A relação estabelecida por
ele entre a pesquisa histórica e a pesquisa da imprensa não termina,
portanto, com a publicação dos livros da fase de maturidade, mas se estende até
a última fase de sua produção intelectual, que tem seu marco inicial no início
dos anos setenta.
As proibições e arbitrariedades não
impediram, portanto, Nelson Werneck Sodré de continuar a refletir e escrever
sobre a situação brasileira, mas estimularam, ao contrário, seu espírito
combativo. A partir do início dos anos setenta, sua produção intelectual passa
a refletir esses embates com a repressão e o cerceamento político, assim como as
mudanças no cenário político cultural, tomando novos rumos. Passados os
primeiros momentos de turbulência ligados à instalação da ditadura e que tanto
repercutiram sobre sua vida, Nelson Werneck Sodré se entrega ainda mais
intensamente à atividade intelectual, em tempo integral, e cresce sua presença
no noticiário.
Nesta última fase, ele se dedica à
revisão e síntese de seus trabalhos anteriores de pesquisa, à defesa de seu
enfoque e à crítica da nova situação social, em particular no campo da cultura
e da comunicação. Nas duas últimas fases de sua produção intelectual, Nelson
Werneck Sodré não só desenvolve a questão da comunicação, mas também a relação
com a imprensa, que continua sendo sua fonte de consulta permanente.
Aprofundando seu estudo da cultura, da comunicação e da imprensa, Nelson
Werneck Sodré denuncia a ameaça da crescente dependência e alienação cultural
do Brasil, que acompanham a expansão da comunicação de massa, para o
desenvolvimento autônomo da cultura brasileira.
O estudo da comunicação lhe permite,
por conseguinte, um novo ângulo de análise histórico-social. Ao mesmo tempo,
Nelson Werneck Sodré interpreta documentos e informações levantadas em outras
obras ou publicações, contextualizando-os e tirando deles uma nova perspectiva
sobre as questões da atualidade acompanhadas pela imprensa. Assim sendo,
considero que Nelson Werneck Sodré trouxe um olhar novo sobre o enfoque
marxista da história ao aceitar o desafio de estudar o pensamento
histórico-social com base na comunicação social e no memorialismo[13]. Desta forma, ele pode dar um caráter dinâmico e vivo
ao seu estudo do processo histórico social brasileiro associando-o à luta
política e cultural, não apenas em seus livros de memórias, mas também em
muitos de seus livros de história social.
Nelson Werneck Sodré dá muita ênfase à dimensão
coletiva da história, mas entra igualmente no detalhe da ação dos principais
protagonistas do processo histórico e escreveu vários livros de memórias sobre
suas distintas áreas de atividade. Tendo sido um escritor que participou
ativamente da história política e cultural brasileira, seus diferentes textos e
livros estão impregnados de suas observações sobre sua época e sobre as ações
de seus principais intérpretes, relacionando-as a uma realização conjunta da
história social.
Alguns marxistas não levam em conta
as particularidades do processo histórico, a memória, a ação e seus
protagonistas, permanecendo no nível da análise macrossocial apresentada
através de um discurso impessoal. Alguns críticos atribuem indevidamente a
Nelson Werneck Sodré esse tipo de uso do marxismo, mas foi justamente com ele
que aprendi a não eliminar a dinâmica da ação e do processo histórico. A
narração de suas memórias possibilitou a Nelson Werneck Sodré testemunhar suas
ideias e contribuiu para a elaboração de suas concepções e as de seus leitores.
Não apenas ele relata suas ações e relações, mas põe também em cena outros
personagens da história do período por ele narrado, revelando como essas ações
vão desencadeando um processo próprio que delineia a mudança histórica ao longo
do tempo.
Distinguindo-se tanto do determinismo
materialista que vê os seres humanos como simples produtos das circunstâncias
como do idealismo que os vê determinados pelas ideias, marxistas como Nelson Werneck
Sodré e Gramsci enfatizam o estudo do processo histórico e a importância da
ação humana, considerando que as condições sociais podem ser transformadas
pelos seres humanos. Eles focalizam a práxis como uma atividade simultaneamente
teórica e prática, buscando com base nesse conceito não apenas explicar o
social, mas também o agir dentro do processo de mudança social.
Nelson Werneck Sodré entrelaça a
narração de sua história pessoal como escritor com a narração do desenrolar da
história social. Sua reflexão histórica passa por um relato pessoal, que é
sempre inserido nas relações sociais de sua época e na luta dos escritores de
sua geração, permitindo assim desenhar o traçado da experiência temporal por
eles vivida. O conhecimento de personagens verídicos, os escritores de sua
época, é feito através da narração de trechos de suas histórias pessoais,
sempre em relação com a história social. Nelson Werneck Sodré focaliza o
encadeamento das ações e a experiência dos escritores e suas instituições, numa
longa cadeia de ações que desvendam a práxis dos escritores.
Sua abordagem da dinâmica histórica,
da memória, da cultura e da práxis dos intelectuais corresponde a uma
perspectiva marxista que não cabe aqui aprofundar, sendo, todavia, importante
mencionar que Nelson Werneck Sodré tinha como referência fundamental o
pensamento de Gramsci a respeito dessas questões. O aprofundamento de sua
abordagem da dinâmica histórica acompanhou suas leituras da tendência marxista
defendida por Antonio Gramsci (1891-1937) por quem tinha especial apreço. Essas
leituras, embora tendo sido pouco explicitadas ou citadas em suas obras,
tiveram grande influência na elaboração de suas memórias. Suas leituras de
Gramsci foram comigo longamente compartilhadas e transparecem em seus escritos
a partir dos anos sessenta. Eles podem ser facilmente reconhecíveis em seus
textos nos quais adota a perspectiva desse marxista italiano sobre a
importância de uma visão dinâmica da história ou sobre o papel da práxis e da
ação dos intelectuais.
Durante toda a sua vida, Nelson
Werneck Sodré esteve em marcha com o país e acompanhou a gestação da nova fase
cultural na qual o Brasil ingressou a partir da década de cinquenta, marcada
pela formação de uma área específica da literatura e pela intensificação do
intercâmbio entre as diferentes áreas da vida intelectual brasileira. Nesse
período, ele denuncia a influência crescente do monopólio e do controle da
informação, assinalando a necessidade de se valorizar a cultura nacional de
raízes populares. Tendo acompanhado direta e intensamente seu processo de
elaboração intelectual, após os anos cinquenta, pude presenciar o esforço de
Nelson Werneck Sodré no sentido de realizar uma história mais humana e colocar
seus dons intelectuais a serviço do avanço da cultura e da sociedade
brasileira.
Caminho na mesma direção que ele e,
embora tendo tomado novos rumos e escolhido outra perspectiva do mundo,
continuo valorizando sua pesquisa. Defendo a ideia que Nelson Werneck Sodré
precisa ser estudado como um dos mais destacados representantes de um grupo de
intelectuais civis e militares de ativa participação nos destinos do país e
como um grande expoente da linhagem de intelectuais brasileiros que abriu novos
horizontes para a pesquisa científica na área das ciências humanas e sociais,
em particular no âmbito da história.
PARA VER NO BLOGUE
MEMÓRIA VIVA DE NELSON WERNECK SODRÉ: https://centronws.blogspot.com/
FONTE DA
IMAGEM:https://brasilescola.uol.com.br/historiab/a-criacao-instituto-historico-geografico-brasileiro.htm
PARA VER NO
FACEBOOK:
https://www.facebook.com/centrodeestudos.brasileiros/posts/4243852745694990
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